[Três excertos]
Não transponho Camões, mas me empenho.
Não atravesso seu mar manuscrito
porque me afogo na incompreensão
no enfado, no palavreado castiço
na análise sintática dos seus versos
onde erro na prova urgente, aflita
sem ouvi-los soar na página a pleno
de difícil lida, da ilimitada luta
na travessia da linha, da estrofe
empolgante, empolada, que arrebata
a vastidão do céu desconhecido
que vai se descobrindo, nuvem por nuvem
até o sol nomear a praia do primeiro passo.
***
Escrevo porque escrevo.
Quando dei por mim, escrevia.
Escrever não tem princípio ou final.
Me mantenho escrevendo.
Luto contra meu corpo desde o início.
Me tenho, escrevendo.
No teclado, ou com a caneta, o lápis.
Mas devido à rapidez
com que penso e esqueço
devia usar a pena de dois séculos atrás
que casa melhor com o gesto incisivo
que imagino, preciso
com sua penugem de asa, com o bico
de um pássaro qualquer, de rapina
mergulhando, veloz e voraz, repetidamente
no gargalo, na garganta do tinteiro
para pegar, pescar, a voz úmida, submersa
contínua e escura, que não pode secar.
***
Desentendo-me comigo
quando me leio nos que me leem
e que montados sobre mim, escrevem
na resenha, no artigo, no ensaio, na dissertação, na tese.
Não vi o que viram ou viram
o que não procede, o que eu vejo
mais ou menos, pró ou contra?
Ninguém acerta em cheio nunca
nem eu no desacerto com os outros?
Não consigo segurar os tomos
que tomaram dos meus dedos, e a fruição
antes do gozo, ou no meio, antes do fim, que não há?
Ou ainda, quando me oferecem
outro prazer não previsto nem sabido?
Ou outra dor sentida e inesperada?
Ou me fazem ler que muito pouco valeu a pena?
Ou que valeu. Enquanto eu parado na porta da recepção
de mim para mim, não consigo dirimir a dúvida irredutível
do destino que já estava escrito.
Armando Freitas Filho (Rio de Janeiro, 1940 – 2024). In “Rol”, 2016. Seu livro de poesia “Respiro”, Editora Companhia das Letras, foi o vencedor do Prêmio Jabuti 2025