Mês: abril 2025
Outono
Tarde pintada
Por não sei que pintor.
Nunca vi tanta cor
Tão colorida!
Se é de morte ou de vida,
Não é comigo.
Eu, simplesmente, digo
Que há fantasia
Neste dia,
Que o mundo me parece
Vestido por ciganas adivinhas,
E que gosto de o ver, e me apetece
Ter folhas, como as vinhas.
Miguel Torga, pseudônimo de Adolfo Correia da Rocha (São Martinho de Anta, Sabrosa, Portugal, 12 de agosto de 1907 — Santo António dos Olivais, Coimbra, Portugal, 17 de janeiro de 1995). In “Antologia poética”
Anti-hero
Prisioneiro de uma canção
Em minha pequena biblioteca consta também o livro intitulado “Prisioneiro de uma canção”, de Plínio Marcos, lançado em 1982. Brochura de capa amarela e lindamente ilustrado por Flávio Roberto de Barros com uma cena circense e com a seguinte dedicatória, que consegui quando comprei do autor em sua banquinha instalada no Centro Cultural de São Paulo: “Ao amigo Eduardo”. É um livro de memórias, em edição do autor, cuja contracapa diz “é a tragicômica história de um sujeito em busca do autoconhecimento”. Essa bela obra relata em cinco contos autobiográficos a trajetória desse santista que dizia em uma entrevista publicada originalmente em 20 de agosto de 1973 na revista Veja – Edição 260: “Eu sou um teatrólogo”. Obra recheada com inúmeros personagens e histórias. O ponto de partida é uma canção popular, que persegue o autor: “Uma duas angolinhas / Finca o pé na pampolinha / O rapaz que jogo faz? / Faz o jogo do capão / Diga lá Mané João / Que retire seu dedinho / Senão vai um beliscão”. Plínio foi meu vizinho na Rua Maranhão e seu filho Leo Lama estudou comigo no Colégio Palmares no início dos anos 80.
Plínio Marcos (Santos, São Paulo, 29 de setembro de 1935 – São Paulo, 19 de novembro de 1999)
Pilha de livros
Cinco visões pessoais
Com o advento da partida do argentino Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco (1936-2025), em 21 de abril, aos 88 anos, li que ele foi professor de literatura e psicologia no colégio da Imaculada de Santa Fé, na cidade de Santa Fé, Argentina, e que citava obras literárias com frequência em seus pronunciamentos, entre as quais livros do seu conterrâneo e ilustre escritor Jorge Luis Borges (1898-1986). Francisco considerava a literatura um tópico essencial para a formação humana e espiritual. Além do escritor portenho ele tinha entre os seus autores preferidos T. S. Eliot, Marcel Proust e C. S. Lewis. Romances e poemas estavam entre os seus gêneros favoritos. “Encontrar um bom livro pode ser como um oásis que nos afasta de outras atividades que não nos fazem bem. A leitura pode abrir em nós novos espaços de internalização que nos impedem de nos fechar naquelas ideias obsessivas anômalas que inevitavelmente nos perseguem”, disse em carta aberta destinada aos jovens padres, publicada em 2024.
Olhando ontem pela manhã minha pequena biblioteca, já que doei boa parte de meus antigos livros para instituições de caridade, encontrei de Borges o pequeno livro “Cinco visões pessoais” (Editora Universidade de Brasília – UnB; 3ª edição, 1996, tradução de Maria Rosinda Ramos da Silva, precisa e fiel ao estilo do autor), que contém as transcrições de cinco palestras proferidas por ele na Universidade de Belgrano de Buenos Aires, Argentina, em 1978. São cinco dos temas sobre os quais ele se debruçou por muitos anos – o livro, a imortalidade, Emanuel Swendenborg, Edgar Allan Poe, o tempo – e nos deixa sua marca de inteligência, humor e imaginação.
No ensaio “O livro”, publicado em “Cinco visões pessoais”, ele resumiu a importância da literatura, dizendo, entre muitos de seus ensinamentos, o seguinte: “Dentre os instrumentos inventados pelo homem, o mais impressionante é, sem dúvida, o livro. Os demais são extensões de seu corpo. O microscópio e o telescópio são extensões da visão; o telefone, uma extensão da voz e, finalmente, temos o arado e a espada, ambos extensões do braço. O livro, porém, é outra coisa. O livro é uma extensão da memória e da imaginação.”
Amiga do sítio e do vagão
Os amigos
no regresso encontrei aqueles
que haviam estendido o sedento corpo
sobre infindáveis areias
tinham os gestos lentos das feras amansadas
e o mar iluminava-lhes as máscaras
esculpidas pelo dedo errante da noite
prendiam sóis nos cabelos entrançados
lentamente
moldavam o rosto lívido como um osso
mas estavam vivos quando lhes toquei
depois
a solidão transformou-os de novo em dor
e nenhum quis pernoitar na respiração
do lume
ofereci-lhes mel e ensinei-os a escutar
a flor que murcha no estremecer da luz
levei-os comigo
até onde o perfume insensato de um poema
os transmudou em remota e resignada ausência
Al Berto, pseudônimo de Alberto Raposo Pidwell Tavares (Coimbra, Portugal, 11 de janeiro de 1948 — Lisboa, Portugal, 13 de junho de 1997), In “Sete poemas do regresso de Lázaro”
Abstrato no carvão 3
Um céu e nada mais
Um céu e nada mais — que só um temos,
como neste sistema: só um sol.
Mas luzes a fingir, dependuradas
em abóbada azul — como de tecto.
E o seu número tal, que deslumbrados
neram os teus olhos, se tas mostrasse,
amor, tão de ribalta azul, como de
circo, e dança então comigo no
trapézio, poema em alto risco,
e um levíssimo toque de mistério.
Pega nas lantejoulas a fingir
de sóis mal descobertos e lança
agora a âncora maior sobre o meu
coração. Que não te assuste o som
desse trovão que ainda agora ouviste,
era de deus a sua voz, ou mito,
era de um anjo por demais caído.
Mas, de verdade: natural fenômeno
a invadir-te as veias e o cérebro,
tão frágil como álcool, tão de
potente e liso como álcool
implodindo do céu e das estrelas,
imensas a fingir e penduradas
sobre abóbada azul. Se te mostrasse,
amor, a cor do pesadelo que por
aqui passou agora mesmo, um céu
e nada mais — que nada temos,
que não seja esta angústia de
mortais (e a maldição da rima,
já agora, a invadir poema em alto
risco), e a dança no trapézio
proibido, sem rede, deus, ou lei,
nem música de dança, nem sequer
inocência de criança, amor,
nem inocência. Um céu e nada mais.
Ana Luísa Amaral (Lisboa, Portugal, 5 de abril de 1956 – Porto, Portugal, 5 de agosto de 2022). In “Às vezes o paraíso”