Mês: fevereiro 2025
Cântico
Nem viver, nem morrer. O melhor é naufragar.
Amor, pensas que é apenas o abajur e o leito.
Mas não. É o céu e é o mar. E o teu corpo,
côncavo de velas, singra pelo mar alto.
O barco tem asas para voar ao céu quando preciso.
Mas não é preciso.
Amada, na dureza das minhas docas ancoraste irremediável.
Teu pescoço é farol.
Brilham mais alto as duas luzes de oitocentas velas.
Flutuante alabastro,
és redonda como uma quilha e alta como um mastro.
E hoje há aviso aos navegantes:
no mar do poeta
haverá um naufrágio em cada hora do dia.
Amada, pensas que apenas é a cópula. Mas não.
Iremos para Taiti, Shangai, Cuba, Vladivostock, Ceilão e para o céu e para o inferno e
para a vida e para a morte.
Compraremos apenas o bilhete de ida.
Quem volta de uma viagem para Vladivostock ou para a Morte?
Para Vladivostock, não! navio que eu amo.
Iremos colher as mandrágoras nos crepúsculos de Manilha
e tomar ópio em Hong-Kong, e comer pêssego em Oman e dormir com meretrizes morenas em rendez-vonz de Port Ssaid.
Mostra os teus braços de abismo
e os seios, duas naves fendidas e encalhadas e encendiadas de um fogo
vermelho na ponta,
mostra-me principalmente
o lago, o vasto lago do ventre,
onde há a ilha do umbigo e o princípio tormentoso do sexo
pois não quero viver nem morrer… que o melhor é naufragar…
Jamil Almansur Haddad (São Paulo, em 13 de outubro de 1914 — São Paulo, 4 de maio de 1988). In “Lua do remorso”
Estrela da vida inteira
Ser moça e bela ser
Ser moça e bela ser, por que é que lhe não basta?
Porque tudo o que tem de fresco e virgem gasta
E destrói? Porque atrás de uma vaga esperança
Fátua, aérea e fugaz, frenética se lança
A voar, a voar?…
Também a borboleta,
Mal rompe a ninfa, o estojo abrindo, ávida e inquieta,
As antenas agita, ensaia o vôo, adeja;
O finíssimo pó das asas espaneja;
Pouco habituada à luz, a luz logo a embriaga;
Bóia do sol na morna e rutilante vaga;
Em grandes doses bebe o azul; tonta, espairece
No éter; voa em redor, vai e vem; sobe e desce;
Torna a subir e torna a descer; e ora gira
Contra as correntes do ar, ora, incauta, se atira
Contra o tojo e os sarcais; nas puas lancinantes
Em pedaços faz logo às asas cintilantes;
Da tênue escama de ouro os resquícios mesquinhos
Presos lhe vão ficando à ponta dos espinhos;
Uma porção de si deixa por onde passa,
E, enquanto há vida ainda, esvoaça, esvoaça,
Como um leve papel solto à mercê do vento;
Pousa aqui, voa além, até vir o momento
Em que de todo, enfim, se rasga e dilacera.
ó borboleta, pára! ó mocidade, espera!
Raimundo Correia (São Luís, Maranhão, 13 de maio de 1859 — Paris, França, 13 de setembro de 1911). Citado por Manuel Bandeira no “Poema para Santa Rosa” – Clique (“Depois, eu mesmo já escrevi: Pousa a mão na minha testa, / E Raimundo Correia: “Pousa aqui, etc.” / É Pouso demais. Basta Pouso Alto.”)
Enrugado com pintas esbranquiçadas
Às cinco da tarde
Entre o touro e a areia
Dormem injustos
O sono dos justos.
Entre o touro e a plateia
Correm os pobres
Os riscos dos podres.
Entre o toureiro e a praça
Firmam um pacto
Os patos e os tontos.
Entre o toureiro e a areia
Tocam os sinos
O dobre dos santos.
Entre o touro e a praça
Dançam os sãos
A dança dos doidos.
Entre o toureiro e a plateia
Ungem-se antigos
Com o óleo das plantas.
Entre o toureiro e a areia
Pecam os moços
Pecados primevos.
Entre a capa e a espada
Conspiram possessos
Na treva do paço.
Entre o touro e o toureiro
Aspiram mordaças
Os padres no fosso.
Entre a capa e o cachaço
Murmuram desídias
As pedras no poço.
Entre a espada e o cachaço
Rumina o touro
Seu curso de cão.
Entre a capa e a areia
Habita o toureiro
A casual solidão.
Entre a espada e a areia
Move o toureiro
Sua gana de pão.
Entre a capa e a plateia
Mata o toureiro
Sua fome de irmão.
Entre a praça e o touro
Morre a fome
Letal da ilusão.
Entre a praça e o toureiro
Vive a massa
Seu dia de pão.
Entre a praça e a areia
Evapora-se a água
Cheirando a sabão.
Entre a espada e a plateia
Um anjo caído
Brinda a devastação.
Entre a tarde e o touro,
A noite caída
Desata a paixão.
José Nêumanne Pinto (Uiraúna, Paraíba, 18 de maio de 1951)
Luas, setas e estrelas
Azul
Ninguém esgota o azul e seus mistérios
Murilo Mendes
Volto ao azul.
Regresso ao não buscado,
Ao nunca visto,
Sequer jamais sonhado.
Volto ao azul,
Ao derradeiro anseio
Do esperado,
Navegante a navegar
No rumo dos contrários.
As ilhas, sempre as ilhas…
E o ignorado porto,
Desfeito, arremessado,
Pelas marés do tempo
Ao enigma do outro lado.
Volto ao azul.
No abismo da memória
Invento os passos
Da criança que fui,
Outrora, em alguma parte.
Perto era o mar e em volta
O escuro… E meu cansaço.
Por que não me tomavam
Ao colo e me afagavam?
Por que não escutavam
Aquela voz que se perdia
Num choro que implorava?
Perto era o mar…
E o mar sempre será
Minha rota
E meu naufrágio,
Meu destino de pássaro,
Gaivota a mergulhar
Em busca do improvável
Porto onde nasci
E onde plantei a infância
E algumas mágoas,
Quando perto era o mar
E ao marulho das ondas
A noite se fechava
Como ostra na concha.
Volto ao azul…
À linha de arrecifes,
Que separa o perau
Das águas calmas.
Na transparência
Sem fim avisto o peixe
Que rápido se afasta,
Um delfim encantado,
Sereno a desenhar
Na opulência das vagas
A linha que o define,
Do vermelho encarnado
Às escamas prateadas,
O peixe,
Apenas um detalhe.
Myriam Fraga (Salvador, Bahia, 9 de novembro de 1937 – Salvador, Bahia, 15 de fevereiro de 2016). Abril, 2013
Cabeça-marimbondo
Perséfone
Esfoliante
Espessante
Tamponante
Esfolante
Mênstruo
Plutão tigra
Tinge o linho de sangue
Precipita
Funda a treva
na força
do abraço áscuo, trifásico.
A rubra romã
entreabre,
morde:
a lua ruiva comigo fulva.
A língua do deus, anti-íntima
perfura a membrana da fuga
abre a mão que retinha
o segredo, grão de sua fome.
Ensina,
tira. Fala.
E no corpo da presa acende
a grande anêmona vermelha.
A pele se veste de papoulas.
dá. O verde rompe da boca, erva, sobe pela terra.
Saber
dizer meu nome devo
àquele que a poder de cavalos
de rodas, de rapto, de abismo
da casa materna me arrastou
menina, ninfa, para o Tártaro
quando eu, distraída, corria para colher o asfódelo e o jacindo.
Lélia Coelho Frota (Rio de Janeiro, 11 de julho de 1938 — Rio de Janeiro, 27 de maio de 2010)