Mês: junho 2025
A ti
Como o sol nasce do monte
E todo o vale alumia,
Assim no meu horizonte
Nasceu teu olhar, um dia.
Nessa manhã cor-de-rosa,
Que dos teus olhos saía,
Tua voz melodiosa
Foi a voz da cotovia.
E logo na minha mágoa,
Neste canteiro sem flor,
Brotou, qual nascente de água,
O teu amor, meu Amor!
Então fez sol deslumbrante
Nos dias da minha vida:
Já não era a luz distante,
Já não a fonte escondida.
Nuvens, tormentas e dores,
Que enchiam meu coração,
Tudo se cobriu de flores,
A esse divino clarão!
E à luz que os teus olhos deram,
Como faróis redentores,
Mundos no mundo nasceram,
Do amor brotaram amores.
Três aves no nosso ninho
O enchem de um fulgor sagrado:
Já não és o sol sozinho,
Fizeste o céu estrelado!
Deus te proteja e te guarde,
Minha Mulher, minha Irmã,
Ó minha Estrela da Tarde,
Minha Estrela da Manhã!
Alberto d’Oliveira (Bonfim, Porto, Portugal, 16 de fevereiro de 1873 — São Mamede, Lisboa, Portugal, 23 de abril de 1940)
Aquele braço
Engrinalda-me com os teus braços
Teu corpo de âmbar, gótico, afilado,
Sempre velado de cheirosos linhos,
Teu corpo, aprilino prado,
Por onde o meu desejo, pastor brando,
Risonho há-de viver, pastoreando
Meus beiços, desinquietos cordeirinhos,
Teu corpo é esbelto, ó zagaia esguia,
Como as harpas que o pai de Salomão tangia!
Teu corpo eléctrico, ogival,
Núbil, sequinho, perturbante,
É uma dispensa real:
Os teus olhos são duas cabacinhas
Cheias dum vinho estonteante
Os teus dentes são alvas camarinhas,
Os teus dedos, suavíssimos espargos,
E os teus seios, pêssegos verdes mas não amargos.
Lira de nervos, glória das trigueiras,
Como tu és graciosa! As laranjeiras,
Desde que viste o sol com esses sóis amados,
Só vinte vezes perfumaram noivados!
Nobre e graciosa és, morena das morenas,
Como as senhoras de olhos belos,
Que passeavam nos jardins de Atenas
Com uma cigarra de ouro nos cabelos!
Como tu, eu sou moço! e atrevido
Com Anceu, rei de Samos,
E jamais caçador me fez vencido,
Quando, caçando o javali, ando entre os ramos.
O meu peito é de jaspe, a minha voz macia,
Meus olhos ágeis e dourados como abelhas,
E, para que as colhas, minha boca sadia
E um orvalhado cabazinho de groselhas.
Novos e alegres somos! Ah! que em breve
Nossas bocas se colem voluptuosas;
Vamos sonhar e toucar-nos de rosas,
Enquanto há sol, enquanto não cai neve!
Não te demores,
Ó cheia de graça,
Que os dias correm voadores,
E a mocidade passa…
A mocidade passa… e, um dia, ó meus pecados,
A tua boca vermelha Será uma rosa velha,
E minhas mãos uns lírios fanados…
E então, velhinhos combalidos,
Como dois galhos ressequidos
Sem folhas e sem pomos,
Lembrar-nos-emos do que hoje somos,
Ó maravilha
De graciosidade!
Como dum filho e duma filha
Que nos morressem na flor da idade!
Eugénio de Castro (Coimbra, Portugal, 4 de março de 1869 — Coimbra, Portugal, 17 de agosto de 1944), in ‘Silva’
Duas mulheres e o sol
A dobadoira
Estava à porta assentada,
dobando a sua meada
A velhinha:
Lenço branco na cabeça
A madeixa lhe sustinha,
E envolve-a a como toalha;
Com que préssa
Sentada à porta trabalha.
O sol doira
Seu cabelo,
Que tem a cor da geada;
Para passar o novelo,
A velhinha
De vez em quando sustinha
A gemente dobadoira;
Em que anda branca meada.
Na dobadoira que gira,
Como a mente que delira,
Nem já toda a atenção pondo;
Nem no novelo redondo
Aumentando
Ao passo que o fio tira,
Todo o seu cuidado emprega!
Pobre e cega,
Ansiada, de quando em quando
Com que tristeza suspira!
Por vezes o movimento
Claro exprime
Tumultuar do pensamento,
Que no imo da alma a oprime
E quase oura!
Muita angústia e paciência
Reflecte-a a intermitência
Do andamento
Ao voltear da dobadoira.
Fica-lhe na mão suspensa
O novelo,
Concentrada não o enleia;
Na orfã netinha pensa!…
Vem-lhe à ideia
Por sua morte:
“Só, no mundo! Entregue à sorte!
Pobre neta…
Pesadelo,
Que tanto a velhinha inquieta.
Não ouvindo a dobadoira,
Que gemia intermitente,
Caindo da mão dormente
O novelo…
Com desvelo,
A neta, cabeça loira,
Vem à porta
Ver o que foi; com susto olha:
Uma lágrima inda molha
A face à velhinha morta.
Teófilo Braga (Ponta Delgada, , Açores, Reino de Portugal, 24 de fevereiro de 1843 – Lisboa, Portugal, 28 de janeiro de 1924). In “Viriato”
Nota: Dobadoira – Aparelho para dobar.
Dobar – Enovelar ou enrolar em novelo.
No dicionário da Língua Portuguesa de Fernando J. da Silva.
PCDA
Um sonho
Eu tive um sonho
Que estava certo dia
Num congresso mundial
Discutindo economia.
Argumentava a favor de mais trabalho
Mais empenho, mais esforço, mais controle, mais-valia.
Falei de polos industriais, de energia.
Demonstrei de mil maneiras
Como que um país crescia.
E me bati pela pujança econômica
Baseada na tônica da tecnologia.
Apresentei estatísticas e gráficos,
Demonstrando os maléficos
Efeitos da teoria,
Principalmente, a do lazer, do descanso,
Da ampliação do espaço cultural, da poesia.
Disse por fim, para todos os presentes, Que um país só vai para a frente
Se trabalhar todo dia.
Estava certo de que tudo o que eu dizia
Representava a verdade para todo mundo que ouvia.
Foi quando um velho levantou-se da cadeira
E saiu assoviando uma triste melodia
Que parecia um prelúdio bachiano,
Um frevo pernambucano, um choro do Pixinguinha.
E, no salão, todas as bocas sorriram,
Todos os olhos me olharam,
Todos os homens saíram
Um por um, um por um, um por um, um por um.
Fiquei ali, naquele salão vazio, De repente senti frio,
Reparei que estava nu!
Despertei-me assustado e ainda tonto
Levantei-me e fui de pronto
Para a calçada ver o céu azul.
Os estudantes e operários que passavam
Davam risadas e gritavam
Viva o índio do Xingu!
Viva o índio do Xingu!
Viva o índio do Xingu!
Carlos Jardel de Souza Leal (Campo Grande, cidade do Rio de Janeiro – 1948)
Jardel, como é conhecido, é economista, trabalhou comigo no Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese) e nesse departamento fizemos juntos no ano de 1998 em Atibaia-SP o curso sobre Reestruturação Produtiva – PCDA – alocados na Turma Amarela, juntamente com os colegas Cátia, Cris, Dagmar, Dary, Glória, Ivone, João Caires, Márcio, Mônica, Pedro “Oxentinho” Ivo, Pedro Sardi, Raul, Rodrigo, Thaiz e Walter.
Comenta via e-mail o colega Jardel: “Boa noite a todos meus queridos amigos. A belíssima poesia encaminhada pelo nosso amado Matosinho é de Gilberto Gil. Fico profundamente feliz por ela fazê-lo lembrar-se de mim, o que é algo de deixar qualquer ser humano orgulhoso. Beijos e abraços para todos!”
Casal
Saudade
Tu és o cálix;
Eu, o orvalho!
Se me não vales,
Eu o que valho?
Eu se em ti caio
E me acolheste
Torno-me um raio
De luz celeste!
Tu és o collo
Onde me embalo,
E acho consolo,
Mimo e regalo:
A folha curva
Que se aljofara,
Não d’agoa turva,
Mas d’agoa clara!
Quando me passa
Essa existencia,
Que é toda graça,
Toda innocencia,
Além da raia
D’este horizonte—
Sem uma faia,
Sem uma fonte;
O passarinho
Não se consome
Mais no seu ninho
De frio e fome,
Se ella se ausenta,
A boa amiga,
Ah! que o sustenta
E que o abriga!
Sinto umas magoas
Que se confundem
Com as que as agoas
Do mar infundem!
E quem um dia
Passou os mares
É que avalia
Esses pezares!
Só quem lá anda
Sem achar onde
Sequer expanda
A dôr que esconde;
Longe do berço,
Morrendo á mingoa,
Paiz diverso…
Diversa lingoa…
Esse é que sabe
O meu tormento,
Mal se me acabe
Aquelle alento!
Ah, nuvem branca
Ah, nuvem d’oiro!
Ninguem me estanca
Amargo choro;
E assim que passes
Mesmo de largo…
Vê n’estas faces
Se ha pranto amargo.
Tu és o norte
Que me desvias
De ir dar á morte
Todos os dias;
A larga fita
Que d’alto monte
Cerca e limita
O horizonte!
Tu és a praia
Que eu sollicito!
Tu és a raia
D’este infinito!
Se ha uma gruta
Onde me esconda
Á força bruta
Que traz a onda;
Á força immensa
D’esta corrente
D’alma que pensa,
Alma que sente;
Se ha uma véla,
Se ha uma aragem,
Se ha uma estrella,
N’esta viagem…
É quem eu amo,
A quem adoro!
E por quem chamo!
E por quem choro!
João de Deus (São Bartolomeu de Messines, Portugal, 8 de março de 1830 — Lisboa, Portugal, 11 de janeiro de 1896). In “Ramo de flores”