A faca não corta o fogo

a faca não corta o fogo,
não me corta o sangue escrito,
não corta a água,
e quem não queria uma língua dentro da própria língua?
eu sim queria,
jogando linho com dedos, conjugando
onde os verbos não conjugam,
no mundo há poucos fenómenos do fogo,
água há pouca,
mas a língua, fia-se a gente dela por não ser como se queria,
mais brotada, inerente, incalculável,
e se a mão fia a estriga e a retoma do nada,
e a abre e fecha,
é que sim que eu a amava como bárbara maravilha,
porque no mundo há pouco fogo a cortar
e a água cortada é pouca,
que língua,
que húmida língua, que muda, miúda, relativa, absoluta,
e que pouca, incrível, muita,
e la poésie, c’est quand le quotidien devient extraordinaire, e que música,
que despropósito, que língua língua,
é do Maurice Lefèvre, e como rebenta com a boca!
queria-a toda

Herberto Helder (Funchal, São Pedro, Portugal, 23 de novembro de 1930 – Cascais, Portugal, Portugal, 23 de março de 2015). In “A faca não corta o fogo, súmula & inédita”, pp. 66-67, Assírio & Alvim, Lisboa, setembro de 2008

Não é um gato

Não é um gato, é uma gata.
Compreendo que seja mais fácil
reduzir todos os gatos a gatos,
mas peço-lhe que, por fineza,
abra uma exceção. É uma gata,
não amamentou gatinhos,
ou porque não teve escolha,
ou, mais provavelmente,
porque não quis. É uma gata,
aluada em certas noites,
a lamber-se sem vergonha,
a desfrutar do seu próprio cio.
Compreendo que seja mais fácil,
sei que não fez por mal, nunca
ninguém faz por mal, já reparou?
Mas peço-lhe que preste atenção
e, no futuro, não volte a cometer
esse erro tão comum. É uma gata,
não é um gato, é uma gata.

07.03.20

José Luís Peixoto (Galveias, Ponte de Sôr, Portugal, 4 de setembro de 1974)

Leitora

Confesso o vício de ler
afago
cada palavra

Bebo o feitiço das histórias
cada rosa cada asa
por onde a busca se enlaça

Revolvo-me na ruptura
ou na ternura descalça
onde a caneta sutura

Tomo o corpo da leitura
enredo-me no seu abraço
ora vestida ora nua

Ao longo deste prazer
não há nada que eu não faça
em entrega e em devassa

Indo mais longe no ler
encontro o cisne e a rola
na tocaia do prazer

Tenho a paixão da leitura
teima na escrita do perigo
e estremeço de prazer ao entreabrir um livro

Corro as mãos nas suas espáduas
desnudo frases de feltro
afloro as suas pálpebras

Entrelaço as consoantes
com as vogais e o enredo
diante das fantasias no sobressalto do medo

Descubro escusas passagens
pelas cisternas dos livros
ao desfolhar suas páginas

Na entrega e no sustido
nas lágrimas e no sorriso
entre o ardil e o tigre

Ora cumprindo
a harmonia
ora querendo a transgressão

Sou uma leitora voraz
tenho um trato com a audácia
e outro com o perdimento

Entre a leitura e a escrita
existe um espaço sedento
rebeldia e firmamento

Digo tempo e confissão
das cartas das bibliotecas
das literaturas secretas

Corro nas linhas dos livros
tropeçando
de avidez

Na cama quero as palavras
Enoveladas errantes
com elas sou viajante

No rumo da minha
vida
estão os livros e as estantes

Gosto de beber o cheiro
do interior da leitura
temperado com canela e as coisas obscuras

Deleito-me com a poesia
endoideço com o romance
esquivamento das mulheres

Com a sua escrita de leite
de linho e alquimia
de aço rumorejante

Encontro a rima cismada
dobro a palavra a vapor
na teima de quem porfia

Vou em busca do fulgor
corro atrás da literatura
dos textos e da leitura

Sou dependente dos livros
sem eles posso morrer
perco-me de tão perdida se proibida de ler

Maria Teresa Horta (Lisboa, Portugal, 20 de maio de 1937 — Lisboa, Portugal, 4 de fevereiro de 2025). In “Pessoa: Revista de ideias – Nº 4”, setembro de 2011

Pequeno cosmos

Ah, rosas, não, nem frutos, nem rebentos.
Horta e jardim sobejam nestes versos
De consonâncias velhas e bordões.

Navegante dum espaço que rodeio
(Noutra hora diria que infinito),
É por fome de frutos e de rosas
Que a frouxidão da pele ao osso chega.

Assim árido, e leve, me transformo:
Matéria combustível na caldeira
Que as estrelas ateiam onde passo.

Talvez, enfim, o aço apure e faça

Do espelho em que me veja e redefina.

José Saramago (Azinhaga, Golegã, Portugal, 16 de novembro de 1922 – Tías, Lanzarote, Espanha, 18 de junho de 2010). In “Os poemas possíveis”, 3ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1981

Daltro: O artista que encontra inspiração em memórias (Série “Movements”)

Eu não sou um pintor de paisagem pantaneira, pois nunca estive no Pantanal“, revela Daltro, um artista que transforma suas memórias em cores e formas. Suas telas, repletas de cores vibrantes, são a expressão de uma visão única do mundo, marcada por uma intensa conexão com suas experiências e sentimentos mais profundos.

Uma jornada artística que começou cedo

A paixão pela arte de Daltro começou ainda na adolescência, quando, no Rio de Janeiro, ele frequentava aulas de desenho com um professor ucraniano. No entanto, foi apenas após mais de 30 anos de vida, já na fase adulta, que ele se reconheceu de fato como artista, entendendo que sua verdadeira vocação estava nas artes plásticas.

O reconhecimento que veio com a arte

Independente da atividade que desenvolvesse, inclusive sua carreira militar, o reconhecimento sempre chegava a Daltro por meio de suas habilidades artísticas. Essa percepção o motivou a se dedicar integralmente à arte, estabelecendo sua carreira como pintor e criador, com um olhar cada vez mais refinado sobre o que o cercava.

Um estilo único que desafia as expectativas

As telas de Daltro são um convite à surpresa para aqueles que esperam uma representação tradicional do Pantanal. Ao invés de seguir o caminho esperado, ele desafia as convenções ao utilizar cores vibrantes e uma abordagem inovadora, criando mundos visuais que são ao mesmo tempo familiares e originais. Sua arte reflete uma visão única do ambiente e da cultura que o cerca.

O artista que une Corumbá e o mundo

Epaminondas Daltro Júnior, conhecido como Daltro, é um artista plástico que vive entre Corumbá e Dourados, em Mato Grosso do Sul. Sua arte explora uma gama de técnicas e suportes para criar obras que representam não só sua cidade natal, mas também a realidade social de sua região. Em cada quadro, Daltro consegue transmitir a essência do lugar, com suas paisagens, festas populares e, especialmente, com suas questões sociais.

Uma arte que transcende fronteiras

Através da internet, Daltro conseguiu ampliar as fronteiras de sua arte, conquistando admiradores ao redor do mundo. Suas obras, que capturam a cultura e a identidade de Corumbá, também abordam questões urgentes, como a situação dos povos indígenas em Dourados, revelando sua preocupação com a sociedade e suas transformações.

Uma jornada de criação constante

Para Daltro, a criação artística é uma jornada que nunca se encerra. Ele está sempre em busca de novas formas de expressão, e acredita que a melhor obra de arte é aquela que ainda está em sua mente, esperando para ser concretizada. Com uma paixão incessante pela arte, Daltro continua a inspirar e a conectar pessoas de diferentes partes do mundo através de suas criações, refletindo, sempre, um olhar único sobre o mundo que o cerca.

Curadoria das fotos: Gejo, O Maldito – Free Art Agency: Site de artes e humanidades. Produtora Hip Hop na área cultural, social, educacional,esportiva, ambiental e saúde. Faz parcerias público/ privadas, ONG’s e particulares. (www.instagram.com/free.art.agency)

Contato com o artista:
www.instagram.com/daltro65