Retrato 3

Uma demora lenta nas palavras
um calor bom na palma das mãos
uma maneira de gostar das pessoas e das coisas
sem tolher movimentos ou forçar as superfícies
beber aos golinhos o café a ferver
ou o whisky chocalhado com pedrinhas de gelo
viver viver roçando as coisas ao de leve
sem poupar o veludo das mãos e do corpo
sem regatear o amor à flor da pele
olhar em torno de si perdida ou esperar o verão
e saber de um saber obscuro que o calor
todo o calor é de mais dentro que vem

Rui Caeiro (Vila Viçosa, Portugal, 27 de junho de 1943 – Oeiras, Portugal, 29 de janeiro de 2019). In “Livro de afectos”, Lisboa, edição do autor, 1992

Valsa das viúvas da pastelaria Bénard

Cada qual de cão ao colo
damos de comer ao cão
chá e migalhas de bolo
pão-de-ló de Alfeizerão.

Arejamos com o leque
calores dos sessenta anos
pérolas de pechisbeque
brincos de prata ciganos.

Lá em casa convivemos
com os estalos da mobília|
tristes silêncios serenos
doçuras de chá de tília.

Réstia de sol nas janelas
de cortinas desbotadas
candelabros de três velas
retratos das afilhadas.

A crueldade do espelho
vem mostrar-nos de manhã
ruínas de um corpo velho
num casaquinho de lã.

E à cabeceira da cama
o riso do falecido
garante qu´inda nos ama
por trás da placa de vidro.

Ai felicidade perdida
porque a mágoa não tem fundo
o cão ladra contra a vida
nós ladramos contra o mundo.

António Lobo Antunes (Lisboa, Benfica, Portugal, 1 de setembro de 1942)

os rostos comunicantes

mas, de tantas solidões da arte,
como escrever sobre uma, não a partir dela,
cabeça de rapariga, um perugino
sobre papel cinzento?

como falar de retratos, da sua reverberação anímica,
daqueles que precisam da quase obscuridade,
luz velada que os preserve? sua mina, de chumbo,
crayon branco, papel de desbotar?

como falar de sua neutral beleza, seus ovais sugeridos
ou delindo-se? como das metamorfoses, do tempo,
de antónio quarateni
que miguel ângelo desenhou, captando-lhe

na juventude oblíqua, o seu olhar ambíguo, feminino,
cerca de 1530? ou de um
dos quatro desenhos de filippino lippi
e de raffaellino

do libro de’ disegni? como captar
em palavras escassas, com hipálages graves, seu aquele
interior sossego de modelo  ̶  nada a ver
com a indiferença mas a pura

transfiguração do lápis? ou como, se quiserdes,
transpor o vício quase entreaberto
de um burne-jones no estudo
para uma das graças de vénus manlia,

o seu olhar velando
promessas indiferentes?
ou ainda uma
mulher deitada de klimt,
de bruços, sua ausência
sensual de olhar em arabesco? ou aquela
cabeça de rapaz, de lupi,
hoje na capa de um livro, o meio sorriso

que ignora a morte e a tem presente?
questões, questões,
inodoras, sem música, mentais melancolias indizíveis,
que têm a ver com uma verdade da arte

ou com a sua mentira (a mais grave da nossa condição),
no mais fundo de aceitarmos uma ou outra, o
simulacro de um conhecimento, de tantas nossas
inquietações, esperanças; tempos outros? morte?

• • •

Vasco Graça Moura (Porto, Foz do Douro, Foz do Douro, Portugal, 3 de janeiro de 1942 – Lisboa, Foz do Douro, Portugal, 27 de abril de 2014). Curadoria de Luís Araujo Pereira

Os abutres

Ao Herberto Helder, in memoriam

I

Morre um poeta
cai um avião
os abutres limparão os corpos
deixando os ossos espalhados
pelas encostas frias das montanhas

Roubarão ao poeta
as palavras não-ditas
que ele fora amortalhando
como se adivinhasse…

Bastaria morrer
para que se abrissem
as páginas dos jornais
com o seu rosto cansado

Poderá ver de longe
com um sorriso amargo
alguma correria aos livros
mais antigos, de que ele
dizia irônico são apenas folhetos…

II

Eu guardo para mim
os primeiros encontros
no café Gelo, ao Saldanha,
diante da bica
nesses anos sessenta, onde
o sucesso pouco importava e
apenas se falava do livro
entregue para publicação
ou de algum outro autor
que se estivesse a ler

Vivia-se entre amigos,
era o Carlos Ferreiro, pintor,
quem fazia as vinhetas
e os desenhos que o Vítor S. T.
lhe ia pedindo para as edições & etc.
Os seus desenhos eram ampliação
da palavra mais negra, mais oculta
batiam no coração.

Anos mais tarde, já depois
da Revolução de Abril,
era com o Alberto Pimenta
outro poeta, um amigo de sempre,
que se discutia o interesse da tão
aguardada nova escrita:
escassa e rara, fazia-se politiquice,
não se lia, o mundo lá fora pouco
ou nada existia
e era assim que o poeta
entristecia

Pego ao acaso num desses “folhetos”
que ele sabia enviar-me, sabia que eu gostava
fui sempre fiel e lia –
desde A Colher na Boca não mais me separara

E aqui o tenho e leio, um deles,
as folhas amareladas pelo ouro do tempo
O Corpo O Luxo A Obra
reparo que há lá dentro uma carta
de que não me lembrava,
estamos em 1978 e ele escreve
a agradecer algo que eu lhe tinha enviado.
É uma carta gentil, caligrafia miúda,
muito bem desenhada…

Para O Corpo O Luxo A Obra
ele escolhera uma epígrafe de Húmus
anterior de dez anos (1966/67)
mas já fecha o seu livro, o tal folheto,
com uma citação da Tabula Smaragdina,
de Hermes Trismegisto, o Pai fundador
da alquimia: é um aceno discreto que me faz
recordando que também ele estudava o ouro
da alquimia, “ouro que se gera a si próprio
no interior da terra”…

Queria ver talvez se eu tinha mesmo
chegado ao fim do livro, o seu folheto,
que o não era, era já o poema contínuo
de uma vida, ela sim forrada por dentro
a folha de ouro, o ouro das palavras
“o nervo que entrelaça a carne toda,
de estrela a estrela da obra”.

Despeço-me, aqui mesmo,
como no café Gelo,
sem saber até quando

A mim, também já de saída,
citar ou evocar já não me chega,
aguardarei o sinal que a Mãe
na véspera me tinha dado
mas sem dizer mais nada:
era um sonho, vejo a Mãe,
aguardando de pé, elegante
e de negro, vestida para uma festa,
enquanto à sua frente, na mesa coberta
por toalha de linho, vários talheres de prata
ainda espalhados, iam ser arrumados

Vejo-a que espera, ainda faltava alguém,
ainda viria alguém para arrumar aquele
resto de vida: era afinal o Poeta,
o filho tão aguardado…

Yvette K. Centeno (Lisboa, Portugal, 7 de fevereiro de 1940). In “Poemas com endereço” (2010-2015), Mariposa Azual, Lisboa, 2015

Boteco do Arlindo

Gripe cura com limão
Jurubeba é pra azia
Do jeito que a coisa vai
Boteco do Arlindo vira drogaria

O médico tava com medo que o meu figueiredo
Não andasse bem
Então receitou jurubeba
Alcachofra de quebra
Carqueja também
Embora fosse homeopatia a grana que eu tinha era só dois barão
Mas o Arlindo é pai d’égua, foi passando a régua
Fiquei logo bom

Gripe cura com limão
Jurubeba é pra azia
Do jeito que a coisa vai
Boteco do Arlindo vira drogaria

Enviu pra conjuntivite
Licor pra bronquite
Cerveja pros rins
Traçados e rabos de galo pra todos os males e todos os fins
O Juca chegou lá no Arlindo se desmilinguindo, querendo apagar
Tomou batida de jambo, recebeu o rango
E botou pra quebrar

Gripe cura com limão
Jurubeba é pra azia
Do jeito que a coisa vai
Boteco do Arlindo vira drogaria

Batida de erva cidreira
Se der tremedeira ou palpitação
Pra quem tá doente do peito faz um grande efeito
Licor de agrião
E toda velhice se acaba se der catuaba pro velho tomar
Meu tio bebeu lá no Arlindo e saiu tinindo pra ir furunfar

Gripe cura com limão
Jurubeba é pra azia
Do jeito que a coisa vai
Boteco do Arlindo vira drogaria

Composta por Maria do Zeca (Rio de Janeiro) – Nei Lopes (Rio de Janeiro, 9 de maio de 1942) e interpretada por João Nogueira (Rio de Janeiro, 12 de novembro de 1941 — Rio de Janeiro, 5 de junho de 2000)