Escolheu um lugar complicado, a parede do túnel sob a Praça Roosevelt. Difícil e perigoso. Debruçou-se, metade do corpo para fora, latinha de spray na mão. Os colegas o seguraram pelos tornozelos e ele começou a escrever. De baixo subia um ruído assustador, como o rugido de um dragão. Era o trânsito pesado que o Minhocão despejava em direção à 23 de Maio e Zona Leste. Dragão, aliás, era o nome de sua gangue de Pichadores. Sentiu a cabeça e o corpo começando a pesar, puxando-o para baixo. Passou até um rabecão do IML, mais azar que gato preto. Sentiu que os tornozelos começavam a escorregar pelas mãos dos colegas, deu medo, também porque se demorava naquele sinal enjoado, uma cobrinha em cima do A, que sempre o atrapalhava quando ia à escola, sabe lá por que chamam de tiom, pensou. E os tornozelos escorregando, seu corpo deslizando em direção ao abismo, não tinha como se segurar. Foi sentindo o peso aumentar, os colegas finalmente o soltaram. Estatelou-se no asfalto do túnel. A polícia examinou o corpo. Um fotógrafo apontou sua câmera para a parede do túnel, estava escrito o que ele escrevera “Não perca sua vida”.
A história é fictícia, mas a frase de fato existe, no local descrito:
Passageiro do trem das onze
Filho único, falha imperdoável
Breve história de solidão e frustração
Não, André Luiz não mentia. Era de fato filho único e, embora já entrado nos trinta, morava mesmo com a mãe, e cuidava dela, num sobradinho deixado pelo pai, no Jaçanã. Aconteceu que naquela noite se descuidou, ficou até muito tarde no apartamento de Aline, uma jovem e simpática garota de programa por quem enrabichara já fazia algum tempo. Perdeu o trem, perdeu a hora de passar na pensão do tio para pegar a marmitex com a comida da mãe. Chegando em casa, já foi adivinhando as queixas de sempre ”André Luiz! Outra vez com aquela mulher? Não presta, meu filho, larga dela”. Mas não. Encontrou-a na poltrona da sala, dormindo, televisão ligada, só com chuvisco. Na mesa, um fogareiro e um ovo que ela tentara em vão cozinhar enquanto ele não chegava com a comida. Queimou uma caixa de fósforos inteira. Em tempo de botar fogo na casa, que perigo!, pensou ele. Foi então que, arrependido e de consciência pesada, resolveu atender os reclamos da mãe – e jurou triste e frustrado, que, embora fosse sentir saudade, nunca mais iria se encontrar com Aline.
Fernando Pacheco Jordão (1937 – 2017) faleceu em São Paulo aos 80 anos. Atuou no jornalismo desde 1957, quando iniciou sua carreira na antiga Rádio Nacional, em São Paulo. Posteriormente, trabalhou como repórter, redator e editor de diversos veículos, como O Estado de S. Paulo, TV Excelsior, BBC de Londres, TV Globo, TV Cultura de São Paulo, revistas IstoÉ e Veja. Como consultor e assessor político atuou nas campanhas dos governadores Mário Covas e Geraldo Alckmin. Dirigente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo na época do assassinato de Vladimir Herzog, Fernando escreveu o livro “Dossiê Herzog – Prisão, Tortura e Morte no Brasil”, que já está na sexta edição e constitui documento fundamental para a História do Brasil. Foi sócio-diretor da FPJ – Fato, Pesquisa e Jornalismo. Hoje é patrono do “Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão”, realizado pelo Instituto Vladimir Herzog desde 2009 e que já está em sua 11ª edição.