Rua do oiro, rua dos metais!
Mazantini de luz, o sol, ao alto…
Bailes russos deslizam no asfalto…
Cantam em coro os vidros e os cristais!
Os teus passeios, como eu sei cantá-los,
São largos tabuleiros de xadrez,
Onde os pés das mulheres, muita vez
São reis, rainhas, torres e cavalos…
Nas montras dos livreiros, os poetas,
Com seus lábios, nos livros, entreabertos,
Dizem sonetos graves, muito certos,
Na sua voz sinistra de profetas…
Horrendas, pela tarde, como espumas…
Os chapéus, nas vitrines, são cabeças,
Degoladas… Ó frívolas condessas,
Vós não tendes miolos, tendes plumas…
Parques nas sedas!… Há jardins nas chitas…
Enforcam-se nas hastes de metal
As éticas gravatas… Em caudal,
O sangue corre aos metros, pelas fitas…
À entrada daquela luvaria
Há certa mão que me parece morta…
Ó mão morta a bater àquela porta,
Em poentes de chuva e ventania…
Nesta perna de vidro tão humana,
Há tanta carne em suas meias ternas,
Que eu grito ao ver passar certa mundana:
São taças de cristal as tuas pernas!…
Sorriem pó de arroz os perfumistas…
Numa loja, acolá, vejo em tropel,
Rolos de telas, blocos de papel:
Roupa branca da alma dos artistas…
Nos ignóbeis balcões dos camiseiros
Há bacanais de meias e espartilhos…
As bonecas de cera, nos barbeiros,
Dão à luz cabeleiras, como filhos…
Nos alfaiates jazem manequins,
Ossadas, afinal, dos nossos fatos…
Pelas confeitarias, os pudins,
Desfalecem, anêmicos, nos pratos…
Nas tabuletas brancas – cemitérios
As letras negras, altas, muito esguias,
São cipreste, são sombras, são mistérios,
Almas dum outro mundo em noites frias…
Órgãos de Barbaria desarmônicos,
Estes carros eléctricos tão belos…
Ruidosos, barulhentos, filarmônicos,
Passam na tarde em risos amarelos…
Rua do Oiro – palco da cidade,
Há bastidores em todas as esquinas…
Bebês, balões, senhoras e varinas,
Militares, cocotes, alvalade…
Os meus olhos – as hastes da tesoura
Recortando as imagens d’Epinal,
Pelos passeios desta rua fora…
Rua do Oiro – humano carnaval…
António Ferro (Santa Justa, Lisboa, 17 de agosto de 1895 — Socorro, Lisboa, 11 de novembro de 1956) – Foi um escritor, jornalista, político e diplomata português. Casado com a poetisa Fernanda de Castro. In “Diário de Lisboa”, 7 de Abril de 1921