A bem dizer sou Ponciano de Azeredo Furtado, coronel de patente, do que tenho honra e faço alarde. Herdei do meu avô Simeão terras de muitas medidas, gado do mais gordo, pasto do mais fino. Leio no corrente da vista e até uns latins arranhei em tempos verdes da infância, com uns padres-mestres a dez tostões por mês. Digo, modéstia de lado, que já discuti e joguei no assoalho do Foro mais de um doutor formado. Mas disso não faço glória, pois sou sujeito lavado de vaidade, mimoso no trato, de palavra educada. Já morreu o antigamente em que Ponciano mandava saber nos ermos se havia um caso de lobisomem a sanar ou pronta justiça a ministrar. Só de uma regalia não abri mão nesses anos todos de pasto e vento: a de falar alto, sem freio nos dentes, sem medir consideração, seja em compartimento do governo, seja em sala de desembargador. Trato as partes no macio, em jeito de moça. Se não recebo cortesia de igual porte, abro o peito:
— Seu filho de égua, que pensa que é?
Nos currais do Sobradinho, no debaixo do capotão de meu avô, passei os anos de pequenice, que pai e mãe perdi no gosto o coronel do primeiro leite. Como fosse dado a fazer garatujações e desabusado de boca, lá num inverno dos antigos, Simeão coçou a cabeça e estipulou que o neto devia ser doutor de lei:
— Esse menino tem todo o sintoma do povo da política. É invencioneiro e linguarudo.
José Cândido de Carvalho (Campos dos Goytacazes, 5 de agosto de 1914 — Niterói, 1 de agosto de 1989), In “O coronel e o lobisomem”, Romance, Livraria José Olympio Editora, 1978. Prefácio gráfico de Appe.