Écloga XVI
Alicuto e Marino
Já vinha a manhã clara
Dourando os horizontes,
E os empinados montes
Com a rosada luz, que os prateara,
Mostravam na campina
O lírio, o goivo, a rosa, e a bonina.
Nas ondas cintilava
O rosto luminoso,
Com que de Cíntia o esposo
A pobre terra clara luz mandava,
Formando um transparente,
Na verde relva, resplendor luzente.
Ambos os pescadores,
Alicuto e Marino,
A quem o Deus Menino
Ateou na água o fogo dos amores,
As redes recolhiam;
E de bastante peixe o barco enchiam.
A praia procurando
Vinham tão mansamente,
Que nem o mar se sente
Ferido de um, e outro remo brando,
Quando do seu destino
Começou a queixar-se assim Marino.
Alicuto o acompanha
Coa sonora harmonia,
Que, há tempos, aprendia
De um pastor, que viera da montanha;
E a seu modo vertendo
Para a ninfa do mar, ia dizendo.
Mar. Se assim como a manhã clara, e brilhante
É da minha adorada o belo rosto,
Como naufraga o peito vacilante,
No incerto mar de um fúnebre desgosto!
Eu vejo, que se alegram neste instante
Cheios de glória, de prazer, e gosto,
Este mar, esta praia, esta ribeira:
Só não há cousa, que alegrar me queira.
Alic. Deiopéia adorada, a luz do dia,
Como funesta nasce a um desgraçado!
Quanto me foi suave a noite fria,
Tanto o rosto da Aurora me é pesado:
O silêncio da noite dirigia
O sossego também de meu cuidado;
E apenas foge o horror da sombra escura,
Quando mais viva toco a desventura.
Mar. Que importa, que em contínua sentinela
Eu ande os crespos mares descobrindo,
Se ingrata sempre a luz da minha estrela
Me vai desses teus olhos dividindo!
O vento, que suave entesa a vela,
A meu ligeiro barco a estrada abrindo,
Solícito me guia a esta praia;
Onde sem ver-te o coração desmaia.
Alic. Três dias há, que giro, amada minha,
Desesperado nesta mortal ânsia
De ver o prêmio, que guardado tinha
A meu peito fiel tua inconstância.
Outra ventura, outra mercê convinha,
De tanto amor, à fatigada instância
E quando o não mereça na verdade,
Quem há, que não te estranhe a falsidade!
Mar. Abrasadas as ondas deste pego
Tenho já com meus ais, com meus suspiros;
Ele me escuta; eu cada vez mais cego
Acuso a sem-razão de teus retiros.
De meus males ao passo, que o navego,
O peso sente, e se revolve em giros;
E até as brutas penhas mais pesadas
Estão de meu tormento magoadas.
Alic. Qual o peixe inocente, que enganado
Bebe no curvo anzol a morte feia,
Sem ver, que o pescador lhe tem armado
Escondida prisão, em que se enleia;
Ou qual o navegante, que enlevado
No canto está da pérfida sereia;
E prova sem cautela a morte dura
Entre os penhascos, onde o mar murmura.
Mar. Qual foge o grande monstro, que o mar cria,
Do arpão ferido, em sangue o mar banhando;
Quando cuida, que escapa à morte fria,
O alento pouco, e pouco vai deixando;
O destro pescador, que a presa fia
Do agudo ferro, a linha então largando,
Quando de todo já exangue o sente,
O barco chega, e o colhe mais contente.
Alic. Tal eu, doce inimiga, sem cautela
Adorava a traição de um falso engano,
Que no teu rosto, ó sempre ingrata, e bela.
Sonhe dissimular Amor tirano
Acreditando aquela indústria, aquela
Mal escondida imagem de meu dano,
Imaginei, que o que era aleivosia,
De um fino, e puro coração nascia.
Mar. Não de outra sorte a bárbara destreza
Dessa homicida mão, dessa alma ingrata,
Depois de assegurar minha firmeza,
De mim se ausenta, e com rigor me mata:
Ah! quanto temo, ninfa, que a fereza
De tua condição, que assim me trata,
Nestas ondas em penha convertida,
Pague o delito de roubar-me a vida!
Alic. De que serve, que eu traga do mar fundo,
A preço de fadiga tão pesada,
Esta, que em tal excesso estima o mundo,
Rama, que fora d’água é encarnada?
De que serve; que lá do mais profundo
Venha oferecer-te a pérola engraçada,
Se encontro sem-razões, iras, rigores?
Se os teus desprezos sempre são maiores?
Mar. Para trazer-te o peixe delicado,
No rio escondo as nassas, ninfa minha;
E ao levantar seu peso desejado,
Vejo saltar a truta e a tainha:
Não me fica também no mar salgado
O retorcido búzio, e a conchinha;
Que supondo ser cousa, que te agrade,
Tudo te vem render minha vontade.
Alic. Em pensamentos mil eu me desfaço,
Ao ver traição tão bárbara, e tão crua;
Rompo o vestido, o corpo despedaço
Quando me lembra a falsidade tua:
Loucuras mil, mil desatinos faço,
Sem pejo, e sem vergonha; em pele nua
Corro esta praia, giro esta ribeira;
E ninguém há, que socorrer me queira.
Mar. Mas que é isto, Alicuto? O nosso canto
quase que vai passando a impaciência.
Alic. Que há de ser, se o meu mísero quebranto
Se apodera de mim com tal violência?
Mar. Mal haja o ter amor, que pode tanto.
Alic. Mal haja o conhecer uma inclemência.
Mar. Que intentar-lhe fugir é desatino.
Alic. Que assim o sinto eu, e tu, Marino.
Mar. Temos chegado ao porto: larga o remo;
Salta na praia tu; que eu aqui fico;
A ver, se vejo a ninfa, por quem gemo,
E a quem as minhas lágrimas dedico.
Alic. Não fiques não, Marino: porque temo
Maior mágoa; que a dor, que sacrifico.
Carreguemos o peixe; que na aldeia
Talvez estejam Glauce; e Deiopéia.
Assim se acomodavam;
E o peixe dividindo
Entre ambos, vão subindo
Um levantado oiteiro, a que chegavam,
Deixando entanto posta
No barco a vara, a rede ao Sol exposta.
Cláudio Manuel da Costa (Vila Real de Nossa Senhora, atual Mariana, Minas Gerais, 5 de junho de 1729 — Vila Rica, atual Ouro Preto, Minas Gerais, 4 de julho de 1789)