Figura dolorosa

Nitrem centauros no palor da boscagem boreal…

De onde os gritos lancinantes das ninfas que fogem?

O fogo em crescentes línguas do inferno célere consome o bosque,
O bosque e as ninfas em chamas, o bosque de onde elas gritam, e

Águias crocitam, irosas, os peitos estourando de força e raiva,
as patas em seus séculos de músculos hipertrofiados, a ira das
rapinantes, com garras a cuspir veneno, e, empunhadas por elas
cimitarras as mais terríveis que poderia um armeiro huno forjar,
entregues às delícias do banquete dos lobos…

e estes aguardam, vorazes, os caninos quentes como lava.

Ninfas correm do útero do bosque às suas extremidades,
e os lobos, as presas de prata cintilando terrivelmente, nelas
bebem o vinho o mais viscoso da vida…

as ninfas e o bosque em chamas, o bosque urbano em chamas

as águias em seu ódio aos humanos, garras vermelhas de guerra
a guerra, a festa das aquilinas rapinantes, contra os humanos e,

mas as ninfas correndo, as águias em seu flanar mesmo encouraçadas
mas as ninfas morrendo, desmembradas quase todas pelos lobos, os lobos

e as águias na disputa com os lobos

garras vermelhas em combate contra presas de prata

as águias em sua festa, orgasmos enquanto espadas quebram ossos,
as águias deliciando-se, fêmeas em seu vigor ejaculando, rasgando

águias rasgando lobos que outrora rasgaram ninfas
ninfas nas mandíbulas dos lobos e os lobos dilacerados nas garras das águias

esta esfera de águias, corvos, lobos e ninfas nada mais do que um imenso entrelaço de rapina

Léo – Foi estagiário no Dieese no final dos anos 90 e me entregou impresso esse seu poema

O sol nas noites e o luar nos dias

De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.

E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.

Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.

Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.

Natália Correia (Fajã de Baixo, Ponta Delgada, Portugal, 13 de setembro de 1923 — Lisboa, Portugal, 16 de março de 1993). In “Poesia completa – Natália Correia”. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999

Garras dos sentidos

Não quero cantar amores,
Amores são passos perdidos,
São frios raios solares,
Verdes garras dos sentidos.

São cavalos corredores
Com asas de ferro e chumbo,
Caídos nas águas fundas,
não quero cantar amores.

Paraísos proibidos,
Contentamentos injustos,
Feliz adversidade,
Amores são passos perdidos.

São demências dos olhares,
Alegre festa de pranto,
São furor obediente,
São frios raios solares.

Dá má sorte defendidos
Os homens de bom juízo
Têm nas mãos prodigiosas
Verdes garras dos sentidos.

Não quero cantar amores
Nem falar dos seus motivos.

Agustina Bessa-Luís, pseudônimo de Maria Agustina Ferreira Teixeira Bessa (Amarante, Vila Meã, Portugal, 15 de outubro de 1922 — Porto, Portugal, 3 de junho de 2019)

O viandante

Trago notícias da fome
que corre nos campos tristes:
soltou-se a fúria do vento
e tu, miséria, persistes.
Tristes notícias vos dou:
caíram espigas da haste,
foi-se o galope do vento
e tu, miséria, ficaste.
Foi-se a noite, foi-se o dia,
fugiu a cor às estrelas:
e, estrela nos campos tristes,
só tu, miséria, nos velas.

Carlos de Oliveira (Belém, Pará, 10 de agosto de 1921 — Lisboa, Portugal, 1 de julho de 1981). In “Mãe pobre”

Ai flores, ai flores do verde pino

– Ai flores, ai flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo!
ai Deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado!
ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pôs comigo!
ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,
aquel que mentiu do que mi há jurado!
ai Deus, e u é?

– Vós me preguntades polo voss’amigo,
e eu ben vos digo que é san’e vivo.
Ai Deus, e u é?

Vós me preguntades polo voss’amado,
e eu ben vos digo que é viv’e sano.
Ai Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é san’e vivo
e seerá vosc’ant’o prazo saído.
Ai Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é viv’e sano
e seerá vosc’ant’o prazo passado.
Ai Deus, e u é?

Dom Dinis, 6º rei de Portugal (Santarém, Portugal, 9 de outubro de 1261 – Lisboa, Portugal, 7 de janeiro de 1325). Cantiga de Amigo pertencente ao Trovadorismo galego-português, onde o eu poético é feminino e seus autores são homens, seus cenários envolvem mulheres camponesas, elas são escritas em primeira pessoa (eu) e, geralmente, são apresentadas em forma de diálogo