Acerca da origem dos heterônimos de Fernando Pessoa (Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos)

Cada heterônimo de Pessoa objetiva um jeito peculiar de chegar ao conhecimento, pois a multiplicação do Poeta em outros poetas: somente assim lhe seria facultado conhecer a realidade aspirar a uma utópica realidade (Massaud Moisés, Fernando Pessoa: o espelho e a esfinge, p.84). Assim, Massaud Moisés introduz uma teoria psicológica, baseada na psicanálise de Jung, para a criação dos heterônimos, dizendo: “Os heterônimos são projeções arquetípicas do inconsciente (coletivo) de Pessoa, e os arquétipos podem ser considerados heterônimos, imagens coletivas/ pessoas que falam de um outro‖ no inconsciente de cada um.” (Massaud Moisés, Fernando Pessoa: o espelho e a esfinge, p. 96). Para Massaud Moisés, Fernando Pessoa criava seus heterônimos em busca de seu self o arquétipo de si mesmo. Assim, não somente Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro eram heterônimos, mas Fernando Pessoa ele mesmo era também um heterônimo, um arquétipo. E Caeiro foi considerado pelo seu criador um mestre.

Massaud Moisés (São Paulo, 9 de abril de 1928 – São Paulo, 11 de abril de 2018), citado por Flávia Lemes de Paula Matsui, in “Estética e metafísica em Álvaro de Campos: Investigação e recepção da sua poesia na Orpheu”, Universidade de Brasília, 2018

Quase

Um pouco mais de sol – eu era brasa,
Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…

Assombro ou paz? Em vão… Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho – ó dor! – quase vivido…

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim – quase a expansão…
Mas na minh’alma tudo se derrama…
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo… e tudo errou…
— Ai a dor de ser — quase, dor sem fim…
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou…

Momentos de alma que,desbaratei…
Templos aonde nunca pus um altar…
Rios que perdi sem os levar ao mar…
Ânsias que foram mas que não fixei…

Se me vagueio, encontro só indícios…
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios…

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí…
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi…

Um pouco mais de sol — e fora brasa,
Um pouco mais de azul — e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…

Mário de Sá-Carneiro (Lisboa, São Julião, 19 de maio de 1890 – Paris, 26 de abril de 1916)

Seis hai-kais de Millôr Fernandes

Eis o meu mal
A vida para mim
Já não é vital.

*

Passeio aflito;
Tantos amigos
Já granito.

*

À nossa vida
A morte alheia
Dá outra partida.

*

A vida é um saque
Que se faz no espaço
Entre o tic e o tac.

*

É meu conforto
Da vida só me tiram
Morto.

*

Probleminhas terrenos:
Quem vive mais
Morre menos?

Millôr Fernandes (Rio de Janeiro, 16 de agosto de 1923 — Rio de Janeiro, 27 de março de 2012)

Um milhão de páginas visitadas, viva o blog “Redescobrindo”

Hoje nosso blog, que já está no ar há quase 20 anos, e que foi remodelado em maio de 2019, está completando 1.016.799 de páginas visitadas. Ele já tem 137 páginas, 1.367 posts publicados, 310 comentários aprovados, um total de 126.926 visitantes e 108.449 visitantes únicos. Como já comentei anteriormente, “Redescobrindo” foi o título que dei para meu livro de poesia concluído em São Paulo em agosto de 2003 e que aqui foi publicado na íntegra, juntamente com algumas pinturas de minha autoria e outros assuntos variados que julguei interessantes. Acima mostro um painel com fotos minhas do começo do blog e de agora, e uma série de trabalhos artísticos meus já publicados nele.

Muito obrigado pelas visitas e pelo prestígio. Este trabalho é feito com muita dedicação e carinho.

Um abraço e volte sempre,

Eduardo Matosinho

Litogravura

Eu voltava cansado como um rio.
No Sumaré altíssimo pulsava
a torre de tevê, tristonha, flava.
Não: voltava humilhado como um tio
bêbado chega à casa de um sobrinho.
Pela ravina, lento, lentamente,
feria-se o luar, num desalinho
de prata sobre a Gávea de meus dias.
Os cães quedaram quietos bruscamente.
Foi no tempo dos bondes: vi um deles
raiar pelo Bar Vinte, borboleta
flamante, touro rútilo, cometa
que se atrasa no cosmo e desespera:
negra, na jaula em fuga, uma pantera.

Passei a mão nos olhos: suntuosa,
negra, na jaula em fuga, ia uma rosa.

Paulo Mendes Campos (Belo Horizonte, 28 de fevereiro de 1922 — Rio de Janeiro, 1 de julho de 1991), In “Testamento do Brasil”, 1966