Os trabalhos e os dias

Sento-me à mesa como se a mesa fosse o mundo inteiro
e princípio a escrever como se escrever fosse respirar
o amor que não se esvai enquanto os corpos sabem
de um caminho sem nada para o regresso da vida.

À medida que escrevo, vou ficando espantado
com a convicção que a mínima coisa põe em não ser nada.
Na mínima coisa que sou, pôde a poesia ser habito.
Vem, teimosa, com a alegria de eu ficar alegre,
quando fico triste por serem palavras já ditas
estas que vêm, lembrados, doutros poemas velhos.

Uma corrente me prende à mesa em que os homens comem.
E os convivas que chegam intencionalmente sorriem
e só eu sei porque principiei a escrever no princípio do mundo
e desenhei uma rena para a caça melhor
e falo da verdade, essa iguaria rara:
este papel, esta mesa, eu apreendendo o que escrevo.

Jorge de Sena (Lisboa, Portugal, 2 de novembro de 1919 — Santa Barbara, Califórnia, EUA, 4 de junho de 1978). In “Não leiam delicados este livro – 100 poemas de Jorge de Sena”, Editora Bazar do Tempo, 2019

Espera

Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.

Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.

Eugénio de Andrade, pseudônimo de José Fontinhas (Fundão, Póvoa de Atalaia, Portugal, 19 de janeiro de 1923 — Porto, Portugal, 13 de junho de 2005). In “De as mãos e os frutos”, 1935

Destino

Quem disse à estrela o caminho
Que ela há-de seguir no céu?
A fabricar o seu ninho
Como é que a ave aprendeu?
Quem diz à planta – “Floresce!” –
E ao mundo verme que tece
Sua mortalha de seda
Os fios quem lhos enreda?

Ensinou alguém à abelha
Que no prado anda a zumbir
Se à flor branca ou à vermelha
O seu mel há-de ir pedir?
Que eras tu meu ser, querida,
Teus olhos a minha vida,
Teu amor todo o meu bem…
Ai! não mo disse ninguém.

Como a abelha corre ao prado,
Como no céu gira a estrela,
Como a todo o ente o seu fado
Por instinto se revela,
Eu no teu seio divino
Vim cumprir o meu destino…
Vim, que em ti só sei viver,
Só por ti posso morrer.

João Baptista de Almeida Garrett (Porto, Portugal, 4 de fevereiro de 1799 – Lisboa, Portugal, 9 de dezembro de 1854). In “Almeida Garrett – Seleção de Poema”, Global Editora, 2011

O sol

Na infância o sol era um companheiro mais alto,
que aparecera primeiro no campo de futebol, e aí, parado,
guardava as costas da baliza e a erva que se tornava quente.
Como se o sol fosse de facto um instrumento de cozinha,
aperfeiçoado, antigo, mas instrumento, matéria
que os meninos agarravam com os dedos e cuja
intensidade podiam por vontade própria regular.
Por exemplo: quando a luz era excessiva
os dedos protegiam os olhos. Outras vezes
o corpo parecia a conclusão
natural, instintiva, do calor que vinha de cima:
Recebíamos o sol como o ponto final recebe
uma frase. Fazia mais sol quando eu tinha seis anos
(quem o fazia?) ou com o tempo e o tédio
me fui distraindo?

Gonçalo M. Tavares (Luanda, Angola, agosto de 1970)

A faca não corta o fogo

a faca não corta o fogo,
não me corta o sangue escrito,
não corta a água,
e quem não queria uma língua dentro da própria língua?
eu sim queria,
jogando linho com dedos, conjugando
onde os verbos não conjugam,
no mundo há poucos fenómenos do fogo,
água há pouca,
mas a língua, fia-se a gente dela por não ser como se queria,
mais brotada, inerente, incalculável,
e se a mão fia a estriga e a retoma do nada,
e a abre e fecha,
é que sim que eu a amava como bárbara maravilha,
porque no mundo há pouco fogo a cortar
e a água cortada é pouca,
que língua,
que húmida língua, que muda, miúda, relativa, absoluta,
e que pouca, incrível, muita,
e la poésie, c’est quand le quotidien devient extraordinaire, e que música,
que despropósito, que língua língua,
é do Maurice Lefèvre, e como rebenta com a boca!
queria-a toda

Herberto Helder (Funchal, São Pedro, Portugal, 23 de novembro de 1930 – Cascais, Portugal, Portugal, 23 de março de 2015). In “A faca não corta o fogo, súmula & inédita”, pp. 66-67, Assírio & Alvim, Lisboa, setembro de 2008