Enteléquia

total
idade
mediada
por ângulos e novas
operações,
triangular-se
mas coordenada
pela posição empírica
do sujeito
a objeções
como
criatura de
30
ou
criatura de
80
dizendo: “a seara
está branca”
em plenitude, resignação
e as superfícies
côncavas, convexas
de Alice B. Toklas
sugerindo a Gertrude Stein
“A rose is a rose is a rose is a rose”
& eu, etc e preferência
escrevo
arroz, arroz, arroz, arroz
ou qualquer brancura
sobre o seu
rosto
sobre o seu
dorso
sobre o seu
sobre
& que eu
sobre quando
esgotarem-se
todas as outras possibilidades eretas
se não
do mundo,
da cidade,
então, esqueça meu nome
se a mim basta-me
um assovio
para que minhas palmas e joelhos
apresentem-se ao seu tapete
e minha saliva não
frustre a minha língua
pois a aprendizagem com
Oswald de Andrade / Frank O’Hara
demonstra que nomear muitas vezes
simplesmente
acalma,
Johannes Göhlich Johannes Göhlich
e venho com este
chamar sua atenção
não-lusófona
conquanto este sujeito
sempre perturba
minhas reflexões
e intromete-se
nos objetos, no ambiente
como se a cutícula
se desprendesse e começasse
a distanciar-se
e fosse obrigado
a admitir
como apêndice
as unhas

Ricardo Domeneck (Bebedouro, São Paulo, 1977). In “Sons: Arranjo: Garganta”, São Paulo: Cosacnaif; Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009

Clube da esquina nº 2

Porque se chamava moço
Também se chamava estrada
Viagem de ventania
Nem lembra se olhou pra trás
Ao primeiro passo, aço, aço, aço, aço, aço, aço

Porque se chamavam homens
Também se chamavam sonhos
E sonhos não envelhecem
Em meio a tantos gases lacrimogênios
Ficam calmos, calmos, calmos, calmos, calmos, calmos, calmos

E lá se vai
Mais um dia
Oh-oh

E basta contar compasso
E basta contar consigo
Que a chama não tem pavio
De tudo se faz canção
E o coração na curva de um rio, rio, rio, rio, rio, rio, rio, rio, rio

De tudo se faz canção
E o coração na curva de um rio, rio, rio, rio, rio

E lá se vai
Mais um dia
Oh-oh

E o rio de asfalto e gente
Entorna pelas ladeiras
Entope o meio-fio
Esquina mais de um milhão
Quero ver então a gente, gente, gente, gente, gente, gente, gente, gente, gente

E lá se vai

Lô Borges (Belo Horizonte, Minas Gerais, 10 de janeiro de 1952 – Belo Horizonte, Minas Gerais, 2 de novembro de 2025) / Márcio Borges (Belo Horizonte, Minas Gerais, 31 de janeiro de 1946)/ Milton Nascimento (Rio de Janeiro, 26 de outubro de 1942). “Clube da Esquina nº 2” é um álbum de 1978, que continua o movimento musical dos artista mineiros iniciado em 1972 com o primeiro álbum. A obra manteve a colaboração coletiva e a diversidade estilística de seu antecessor, sendo lançada como uma continuação do disco original, com 23 faixas em dois LPs. Ele aborda temas de esperança e desespero, refletindo as contradições sociais do Brasil sob o regime militar e explorando a tensão entre o trauma histórico e futuros incertos. O álbum original de “Clube da Esquina” (1972) é considerado o disco mais emblemático do movimento e se destacou pela sua qualidade, sendo reconhecido como um dos álbuns mais importantes da história da música brasileira

Ícaro

A minha dor, vesti-a de brocado,
Fi-la cantar um choro em melopeia,
Ergui-lhe um trono de oiro imaculado,
Ajoelhei de mãos postas e adorei-a.

Por longo tempo, assim fiquei prostrado,
Moendo os joelhos sobre lodo e areia.
E as multidões desceram do povoado,
Que a minha dor cantava de sereia…

Depois, ruflaram alto asas de agoiro!
Um silêncio gelou em derredor…
E eu levantei a face, a tremer todo:

Jesus! ruíra em cinza o trono de oiro!
E, misérrima e nua, a minha dor
Ajoelhara a meu lado sobre o lodo.

José Régio, pseudônimo de José Maria dos Reis Pereira (Vila do Conde, Portugal, 17 de setembro de 1901 — Vila do Conde, Portugal, 22 de dezembro de 1969). In “Poemas de Deus e do Diabo”

Clarissa

Ê, clareou Clarissa!
Amanheceu, bom dia!
Por favor, não se perca de mim
Esqueça de mim!
(Não!)

É pra dançar, Clarissa
Recolher o sonho, despertar
E sonhar outra vez!

Ê, mundo!
Gira a roda cantando
Vou desafinar!
Vou desafinar!

Ê, clareou Clarissa!
Amanheceu, bom dia!
Por favor, não se perca de mim
Esqueça de mim!
(Não!)

É pra dançar, Clarissa
Recolher o sonho, despertar
E sonhar outra vez!

Ê, mundo!
Gira a roda cantando
Vou desafinar!
Vou desafinar!

Ê, clareou Clarissa!
Amanheceu, bom dia!
Por favor, não se perca de mim
Esqueça de mim!
(Não!)

É pra dançar, Clarissa
Recolher o sonho, despertar
E sonhar outra vez!

Ê, mundo!
Gira a roda cantando
Vou desafinar!
Vou desafinar!

Paulo Malaguti ou Paulinho Pauleira (Rio de Janeiro, 3 de novembro de 1959). Canção interpretada pelo conjunto “Céu da Boca”

Um retrato

Eu mal o conheci
quando era vivo.
Mas o que sabe
um homem de outro homem?

Houve sempre entre nós certa distância,
um pouco maior que a desta mesa onde escrevo
até esse retrato na parede
de onde ele me olha o tempo todo. Para quê?

Não são muitas as lembranças
que dele guardo: a aspereza
da barba no seu rosto quando eu o beijava
ao chegar para as férias;
o cheiro de tabaco em suas roupas;
o perfil mais duro do queixo
quando estava preocupado;
o riso reprimido
até soltar-se (alívio!)
na risada.

Falava pouco comigo.
Estava sempre
noutra parte: ou trabalhando
ou lendo ou conversando
com alguém ou então saindo
(tantas vezes!) de viagem.

Só quando adoeceu e o fui buscar
em casa alheia
e o trouxe para a minha casa (que infinitos
os cuidados de Dora com ele!)
estivemos juntos por mais tempo.
Mesmo então dele eu só conheci
a luta pertinaz
contra a dor, o desconforto,
a inutilidade forçada, os negaceios
da morte já bem próxima.

Até o dia em que tive de ajudar
a descer-lhe o caixão à sepultura.
Aí então eu o soube mais que ausência.
Senti com minhas próprias mãos o peso
do seu corpo, que era o peso
imenso do mundo.
Então o conheci. E conheci-me.

Ergo os olhos para ele na parede.
Sei agora, pai,
o que é estar vivo.

José Paulo Paes (Taquaritinga, São Paulo, 1926 — São Paulo, 9 de outubro de 1998). Curadoria de Luís Araujo Pereira. In “Prosas seguidas de odes mínimas”, 1992