Fragmento

(…)

E mesmo que eu não soubesse a sutil diferença entre a verdade e mentira, mesmo que eu não conseguisse olhar você como alguém real. Você, na verdade, não me representa um deus. Na verdade, você é o resultado de tudo o que eu falei sobre você. Você nem é vivo. Nem é livre. Nem mesmo respira o ar dos próprios pulmões. E todas essas vezes que eu te procurei. Onde você estava? Estava escondido atrás de algo. Algo tão grande que pudesse tapar a sua miséria. Ou tão particularmente falso como tudo que já me foi dito.
Eu olhei no espelho e vi o seu rosto. Era isso que você queria? Que eu visse o seu rosto no meu espelho. É esse o sentido da minha vida? Passar essa sua cara suja para frente? Eu cuspi no espelho. Eu cuspo na sua cara. Eu nunca vou passar essa sua herança desgraçada para frente. E você sabe porquê. Eu nunca vou gerar outro ser grotesco como nós dois e você sabe porquê. Mas você não quer falar nisso, não é?
Eu vou contar uma história para você. Uma historinha bem singela. Quase uma fábula. É de um garotinho de uns oito anos que queria sentar nos seus joelhos e ouvir palavras, quaisquer palavras, contanto que não fosse algo desagradável. Mas você não sabe dizer nada que não seja desagradável. Você não sabe, não é?
Esse garotinho cresceu ouvindo coisas desagradáveis e tornou-se um garotinho desagradável. Cresceu olhando a mãe porque não tinha outra coisa para olhar. Os olhos de constante medo. Aquela marca roxa horrível no braço esquerdo ou nas coxas, ou no braço direito. Marcas. Eu cai. Não, imagina só, o seu pai é um santo homem. Sem saber ela mesma criava o paradoxo. Não se pode ser santo e homem. Não. Você era um santo homem. Tão contraditório quanto a minha existência. Como foi que eu nasci? Estupro?
Bom, mas não era disso que ia falar. Ia falar de um garotinho desagradável. Não se preocupe, nós temos todo o tempo do mundo. Nem um minuto a menos. Não era assim que você dizia? Nós temos todo o tempo do mundo, explique-se. Eu nunca queria explicar, nunca queria dizer o que me fazia chegar tarde em casa ou o que me fazia demorar na rua. Por que você não arranja uma namorada?
Ontem eu estava lembrando do tempo que eu era criança. Você parecia gostar de mim. Eu sei lá. Era o único homem. Era como você. Eu ia para o bar com você. Lembro daqueles homens todos me olhando. Você falava com orgulho. Mandava eu mostrar o meu pau. Eu não queria. Você colocava a mão. Olha o pirulito dele. Eu não quero. Você não é homem rapaz. É uma mocinha escondendo. O que é? Quer ficar com a mamãe. Mostra logo essa merda ou eu te quebro a cara. Você esta bêbado, deixa o menino. Eu mando nele. Mostra o pau logo, moleque. Pára com essa mania de mocinha.
O meu primeiro homem foi um de seus amigos. Ele fez igualzinho você. Mostra o seu pau para eu ver. Mostra. Abriu minha calça. Mostra o pau para o papai. Você não é meu pai. Enfiou tudo na boca. Começou a chupar tão gostoso. Caralho! Que gostoso! Vai, veado filha da puta. Chupa o meu pau. Gostoso. Eu não tinha nunca estado com mulher. Nem homem. Nem cabra. Ovelha. Vem, caralho! Chupa o meu pau. Goza na minha boca. Goza gostoso na minha boca. Eu soltei tudo. Eu soltei tudo na boca daquele filho da puta. Não quero beijo. Não gosto de beijo. Vira minha menininha. Vira, gostosinha. No meu cú, não. Cala a boca ou quebro a sua cara. Cala aboca e vai engolindo o meu pau. Cala a boca ou eu conto para o seu pai. Eu sentia o ar faltar. Eu queria que aquilo acabasse logo. Ele estava me rasgando. Ele enfiou tudo e começou a mexer gostoso. Ah! Como é gostoso quando passa a dor. Pegou no meu pau. Ah! Que gostoso! Bateram na porta. Quero mijá, caralho. Você vai demorar muito, boiolinha. Eu tô passando mal. Vomitei no chão do banheiro todo e tô cagando. Que merda! Vô mijá na porra do poste. Caralho. Ele mordeu meu pescoço. Eu com o pau dele atolado no meu cú. Gostoso.
O que aconteceu, filho? Você esta passando mal? Comi alguma coisa estragada. Não sei o que foi. Soltou tudo. Tem um caminho de merda no banheiro. Alguém vai ter que lavar. Eu lavo. Meu filho não está passando bem. Vai pra casa. Eu já vou. Tá até suando. Sabe o que eu achava engraçado. Sempre que eu mentia você queria acreditar. Sempre que eu mentia você me tratava bem. Agora você ia me tratar bem para sempre porque eu só mentia. Cagava no chão do banheiro toda vez que ia no bar. Você sempre preocupado, achando que era alguma doença. Eu diria que era uma espécie de doença. Eu era a mulherzinha de todos os seus amigos. Seu pai é um babaca. Meu pai? Seu pai nem desconfia da bichinha que ele tem em casa. Meu pai? Tá surdo moleque? Sua mulher sabe da bichinha que ela tem em casa? Aposto que você não dá no coro. Fica pensando em bunda de homem, pinto de homem e vê aquela coisa flácida, cheia de celulite. Não fala assim da minha mulher. Meu pai não é um babaca. A sua mãe. A sua mulher. O seu pai. Os seus irmãos. E a merda toda da sua família é que é babaca. Eu vô quebra a sua cara moleque. Quebra. Quebra que eu falo que tava comendo o seu cú. Você não faria isso. O meu pai não é babaca. Seu veado filho de uma puta. Eu vô quebra você. A minha porra ainda tá no seu cú. Fui pará no hospital. Doze fraturas. O cara era um troglodita. E tinha uma bunda linda. Não falei nada. Por que foi que você brigou? Não disse que ele tinha chamado você de babaca. Não disse que eu tava comendo a bunda dele. Não foi nada. Coisa do meu orgulho de homem. Não é engraçado? Eu já tinha planejado a sua morte muitas vezes. Eu já tinha te quebrado a cara em quase todos os meus sonhos, mas quando aquele filho da puta te chamou de babaca. Eu lembrei daquele natal que eu escrevi para o Papai Noel pedindo uma bicicleta. E ele respondeu: a bicicleta eu não sei, mas uma grande surpresa você vai ter. A mãe não gostava muito dessa história de natal. Ela dizia que uma família que só comia arroz com chuchu não tinha dinheiro para carne, não pode acreditar em fantasia. A gente nunca pode deixar de sonhar. Se as crianças deixarem de sonhar, todos vão ser velhos muito cedo. Você foi ao depósito de material de construção que tinha em frente de casa. Comprou barras de ferro tubulares. Tinta amarela. Corrente. Um pedaço de madeira, uma tábua. Na manhã de natal quando eu e as minhas irmãs acordamos. No quintal. O balanço maior e mais bonito do mundo. Amarelo. Dava certinho para os quatro. Os vizinhos todos, que se achavam muito ricos, ganharam jogos e bonecas caras. Mas todo mundo passou o dia todo no nosso balanço amarelo. Você não é um babaca. Você é o meu pai. O pai que construiu o balanço amarelo para que o meu sonho e das minhas irmãs não acabasse.
Você poderia ter sido o meu herói. Custava se esforçar um pouco? Custava beber menos e não acordar Deus sabe onde com os mais variados tipos de mulher? Custava ter batido menos na minha mãe? Custava ter feito menos vergonhas financeiras. Ter pego emprestado sem pagar. Custava nunca ter me ameaçado de morte? Eu queria um herói, eu queria me orgulhar de você. Como? Você esperava a minha mãe chegar em casa para começar todo dia um novo escândalo. Erguer uma faca e apontar para alguém. A faca sempre tremia na sua mão bêbada. Eu tinha nojo de ser seu filho. Meu pai? Meu pai é um cara inteligente, fez quatro faculdades. É. É sim. É o que você viu caído na frente da farmácia ontem. Ele vai ao A.A. Pode acreditar. Você nunca foi. Eu estava lá pedindo, implorando. Seja o meu herói. E você contava histórias e eu as repetia. Meu pai poderia ser um grande escritor. Por que ele não é? Ele poderia ser. Sabe o trabalho dele é muito desgastante. Eu percebia que, no fundo as pessoas queriam rir quando eu dizia o trabalho dele. E apesar de tudo eu te amo. Não sei se é amor. Ou se foi depois. Eu queria ter tido um pai para conversar. Para eu dividir a minha vida.
Sabe, pai, eu sempre quis ser uma gueixa, uma cortesã. ter algumas dessas casas que sejam o retiro de alguns homens casados. Eles transam comigo e se sentem bem. Ouvindo uma boa música. Tomando bons vinhos. Tenho um espírito mundano, sei disso. Sinto muito isso dentro de mim. Como uma diva, sabe? Uma pop star. Como a Barbra Streisand. Toda a boa bicha sonha com a Barbra Streisand. No fundo é só isso. Ter alguns miligramas de porra no estômago, ou litros dependendo do cara, e saber decor todas as canções do Yentle. Nós poderíamos ter visto Hello, Dolly juntos. Duas bichas papai e filhinho juntos. Eu estaria na minha calça de pelúcia cor de rosa e você iria com um topizinho de lamê chiquérrimo. Assistiríamos a tudo abraçadinhas e soltaríamos comentários ácidos entre gritinhos. Olha a mala dele. Choraríamos no final. Como duas boas bichinhas. Quase mulheres. Não é assim que você espera que eu seja? Que um dia eu entre com uma tremenda peruca loura e grite: Operei! Não foi isso que você gritou antes do soco. Eu esperei a minha vida para ter um filho, um filho e o que tenho é outra mulherzinha. Toma para ver se aprende a ser homem. A verdade, pai, é que eu sou homem. E, se você não estivesse tão preocupado com os seus valores, seria capaz até de ter orgulho de mim. Eu não menti para você. Sabia que você ia quebrar a minha cara. Sabia que teria que ir ao hospital depois. Sabia que depois do hospital, teria que arrumar um outro lugar para morar, uma vez que não poderia mais entrar na sua casa. Mas eu não menti. Não tive de enfrentar o seu ódio e o julgamento de todos. Eu sou gay e você o que é? Muito bem, você se casou com uma mulher que cansou de espancar, teve quatro filhos que cansou de espancar. Trabalhava como encarregado de uma empresa medíocre. Quais eram os seus sonhos? Esses? Duvido muito. Lembro que você disse em meio a embriaguez que queria ter sido cantor. Por que não foi?

(…)

Cintia Alves
Dramaturga, diretora teatral e pesquisadora de acessibilidade estética. Gestora do @somosgrao no Instagram.
www.vozesdiversas.com

Autor: ematosinho

Eduardo Matosinho é economista e sociólogo com bacharelado pela Universidade de São Paulo (USP). Tem 60 anos e é casado com Luiza Maria da Silva Matosinho e com ela tem um filho de nome João Alexandre da Silva Matosinho. Trabalha atualmente na Galeria Pontes (https://www.galeriapontes.com.br/), onde já está há 17 anos.

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