Nessa nova contribuição ao site “Vivendocidade” apresentarei dois autores, um alemão e outro canadense, cujas obras mostram tendências contemporâneas da teoria sociológica. O primeiro autor analisado será Norbert Elias (Breslau, 22 de junho de 1897 – Amsterdã, 1 de agosto de 1990) e enfocarei seus livros “Os alemães” e “A sociedade de corte”. Uma outra tendência comentada está no trabalho de Erving Goffman (Mannville, Alberta, 11 de junho de 1922 – Filadélfia, 19 de novembro de 1982) intitulado “Estigma, notas sobre a manipulação da identidade deteriorada”. Espero que a leitura seja proveitosa e que você retorne mais vezes a este site para se inteirar sobre sociologia, cotidiano, espaço urbano e política.
A obra de Norbert Elias aparece hoje com uma destacada vitalidade e a pesquisa de nossos dias encontra nele um precursor brilhante e estimulante. Ele procura pensar as relações entre as várias cadeias de processos históricos e considera essas relações como um tema central da própria história, que transforma cada época em um todo indissociável. Sua obra também se preocupa com o espírito de cada época que a historiografia até então dominante tomava como explicador da história. Para ele esse é o ponto que é preciso verdadeiramente explicar.
Um livro que se destaca em sua obra é sem dúvida “Os alemães” e eqüivale a uma exposição quase contínua, do ponto de vista cronológico, do desenvolvimento social alemão. Nessa obra o autor aponta os muitos caminhos em que as características do “habitus”, da idiossincrasia, da personalidade, da estrutura social e do comportamento alemão se combinam para produzir a ascensão de Hitler e os genocídios nazistas podem ser entendidos como resultantes do passado da Alemanha. Ele mostra um hábil entrelaçamento de provas empíricas e argumentos teóricos para desenvolver o seu estudo.
Seu conceito de “habitus” significa basicamente “segunda natureza” ou “saber social incorporado”. Esse termo é usado em grande parte para superar os problemas da antiga noção de “caráter nacional” como algo fixo e estático. Ele implica um equilíbrio entre continuidade e mudança, onde o “habitus” muda com o tempo precisamente porque as fortunas e as experiências de uma nação continuam mudando e acumulando-se.
Nessa obra Norbert Elias foi capaz de escrever uma verdadeira “biografia” dos alemães. Ele faz a seguinte comparação: “assim como o desenvolvimento de uma pessoa individual, as experiências dos períodos anteriores de sua vida continuam tendo um efeito no presente, também as experiências passadas influem no desenvolvimento de uma nação”.
A tese central desse livro é de que a facilidade e rapidez com que Estados centralizados emergiram na Europa Ocidental dependeu, ceteris paribus, do tamanho das formações sociais envolvidas e, assim, da extensão das divergências geográficas e sociais existentes. Sua análise é profundamente histórica e mostra a trajetória do povo alemão em função das marcantes derrotas nas guerras em que estiveram envolvidos, desde o Império “Romano Germânico” até a derrota da Alemanha na II Guerra Mundial. Analisa em detalhes as conseqüências sobre o povo alemão dessas derrotas e como ele reagiu a essas adversidades.
Outra obra importante desse autor e que aponta algumas tendências contemporâneas da teoria sociológica é “A sociedade de corte”. Nela Elias analisa a corte régia do antigo regime e mostra as relações sociais que levaram uns aos outros por estranhas obrigações nas quais os homens se beneficiavam e eram vítimas. Ao mesmo tempo estavam ligados por uma ordem hierárquica mais ou menos rígida e por uma etiqueta minuciosa. O autor discute qual era a estrutura do contexto social no seio do qual pôde surgir esta formação. Analisa também quais exigências que decorriam da estrutura da sociedade de corte para com aqueles que nela desejavam triunfar ou simplesmente manter-se.
A importância do tema é que a corte revestia-se de um caráter representativo e central na maior parte dos países europeus nos séculos XVII e XVIII. Nessa época, não era a cidade que irradiava sobre todo o país, mas a “corte” e a “sociedade de corte”. As heranças dessa sociedade foram muito fortes e, como diz Elias, a sociedade aristocrática de corte representa uma figura central dessa fase histórica que foi suplantada pelo período da burguesia-profissional-urbana-industrial, ao fim de um processo de muitas lutas. No entanto, ela sobreviveu e manteve-se na vida social e cultural dessa mesma burguesia, em parte como herança, em parte como imagem invertida da sociedade de corte. Seu objetivo último é compreender a nossa própria sociedade atual estudando detalhadamente a sociedade de corte que foi a última grande formação não burguesa do Ocidente.
Já Erving Goffman em sua obra “Estigma, notas sobre a manipulação da identidade deteriorada” retoma o tema do estigma, ou seja, a situação do indivíduo que está inabilitado para a aceitação social plena. Goffman realiza um exercício no sentido de separar o material sobre o estigma de fatos vizinhos, de mostrar como esse material pode ser descrito de uma forma econômica no interior de um único esquema conceitual, e de esclarecer a relação do estigma com a questão do desvio.
Quando aborda a questão do estigma e da identidade social o autor menciona três tipos de estigma. Em primeiro lugar aparecem as várias deformidades físicas, em segundo, as culpas de caráter individual, como vontade fraca, paixões tirânicas, crenças falsas, desonestidade e, por último, ele aponta os estigmas tribais de raça, nação e religião, que podem ser transmitidos através de linhagem e contaminar por igual todos os membros de uma família.
O interessante é que em todos os exemplos apontados encontram-se as mesmas características sociológicas: um indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na relação social cotidiana possui um traço que pode se impor à atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção para outros atributos seus. Essa pessoa possui um estigma, uma característica diferente da que a prevista.
Segundo Goffman ocorre uma das cenas fundamentais da sociologia quando indivíduos normais e estigmatizados realmente se encontram na presença imediata uns dos outros, especialmente quando tentam manter uma conversação. Isso ocorre porque, em muitos desses casos, esses momentos serão aqueles em que ambos os lados enfrentarão diretamente as causas e os efeitos do estigma. Nessa cena o estigmatizado pode descobrir que se sente inseguro em relação à maneira como os normais o identificarão e o receberão. Surge nele a sensação de não saber aquilo que os outros estão “realmente” pensando dele. Além disso, é provável que o indivíduo estigmatizado sinta que está “em exibição” e leve sua autoconsciência e controle sobre a impressão que está causando a extremos e áreas de conduta que supõe que os demais não alcançam.
Após analisar vários casos de estigma o autor aborda também outros pontos bastante atuais como o controle de informações e identidade pessoal, o alinhamento grupal e identidade do eu, o eu e o outro (onde analisa os desvios e as normas e o estigma e a realidade) e os desvios e comportamento desviante.
Artigo publicado originalmente no site “Vivendocidade”, de Carlos Correa Filho (30/01/2013)