Boi Paciência: Os rios de nossa São Paulo

A meditação sobre o Tietê – Trecho (Mário de Andrade)

“Eu vejo; não é por mim, o meu verso tomando
As cordas oscilantes da serpente, rio.
Toda a graça, todo o prazer da vida se acabou.
Nas tuas águas eu contemplo o Boi Paciência
Se afogando, que o peito das águas tudo soverteu.
Contágios, tradições, brancuras e notícias,
Mudo, esquivo, dentro da noite, o peito das águas,
fechado, mudo,
Mudo e vivo, no despeito estrídulo que me fustiga e devora.
Destino, predestinações… meu destino. Estas águas
Do meu Tietê são abjetas e barrentas,
Dão febre, dão morte decerto, e dão garças e antíteses.
Nem as ondas das suas praias cantam, e no fundo
Das manhãs elas dão gargalhadas frenéticas,
Silvos de tocaias e lamurientos jacarés.”

Convidamos você a navegar comigo e com o amigo Pacca pelo site “Vivendocidade” nas curvas dos rios de nossa cidade.

Resgatando a memória de Vila Nova Savóia, situada na Zona Leste, um bairro pouco conhecido até mesmo por seus próprios moradores, devido à dificuldade de identificar seus limites e a inexistência de uma linha de ônibus com seu nome desde a sua formação em 1924. Contudo, o córrego Gamelinha, existente no bairro, é conhecido por todos. Mesmo após a sua canalização em 1991, com a construção da av. Margarida Maria Alves, atualmente av. Dr. Bernardino Brito Fonseca de Carvalho, o nome do córrego é usado para denominar a avenida, mostrando a importância do caminho das águas para a população local. O nome do rio é um referencial antigo, que dificilmente é alterado. Apesar da urbanização ter canalizado muitos cursos d’água, os seus nomes ainda são utilizados pela população para denominar as vias públicas que seguem os seus trajetos. Outro exemplo é o da Avenida Jacu-Pêssego, que recebeu esse nome como herança dos imigrantes japones que na década de 20 se instalaram em uma área verde no extremo leste da capital para produzir pêssegos. Para comercializarem as frutas, abriram uma pequena estrada de terra, à margem do Rio Jacu, que era conhecido pelo nome do pássaro comum naquelas paragens. Só em 1996 a antiga estrada recebeu o nome de Avenida Jacu-Pêssego.

Esse também é o caso das avenidas marginais Tietê e Pinheiros, onde os rios são muito mais importantes e reconhecidos do que a denominação das vias. Curiosamente, esse mesmo fenômeno acontece com as pontes da Marginal Tietê: os nomes de bairros a que dão acesso as pontes são mais usados que o nome oficial. Por exemplo, a antiga ponte da Vila Maria, teve seu nome oficialmente substituído por ponte Presidente Jânio Quadros, mas a maioria dos paulistanos ainda usa o nome antigo.

Aliás, o Tietê, nem sempre se chamou Tietê. Até o início do Século XVIII era o Rio Anhembi, nome de origem indígena, registrado pela primeira vez pelo viajante e Governador do Paraguai, D. Luiz de Céspe des Xeria: “Anhembi quer dizer rio de unas aves animais” – aves que causavam espanto ao europeu com seu unicórnio frontal, os esporões das asas, os pés grandes e o grito que, segundo o Padre Anchieta, lembrava um burro zurrando.

Em Caminhos e Fronteiras, Sérgio Buarque de Holanda nos confirma que “Anhembi quer dizer rio das Anhumas ou de Anhimas”, aves que desde o início do povoamento eram procuradas pelos caboclos, que buscavam nelas o remédio para toda sorte dos males, “Especialmente do unicórnio, mas também dos esporões e até dos ossos, faziam-se amuletos e mezinhas contra ramos de ar, estupor, mau-olhado, envenenamento e mordedura de animais”.

Há os que viam a origem do nome diferente. Para Teodoro Sampaio, Anhembi significaria perdiz, ave que existia em quantidade nos campos de Piratininga. Para Afonso de Freitas, significaria rio de veado, da simbologia dos tupi-guaranis (anhan – correr e anga – alma, espírito) e a fama de mais ágil e veloz do animal.

Em 1748, o nome Tietê foi pela primeira vez registrado cartograficamente no Mapa D’Anville. Referia-se apenas ao trecho situado entre a nascente do rio e o salto de Itu, mas acabou por prevalecer sobre o resto.

Ainda naquele século, o nome Tietê foi associado, por José Gonçalves Fonseca, às aves conhecidas por tetés, semelhantes aos pintassilgos, que eram muito comuns nas margens. Mais tarde, Teodoro Sampaio levantou duas hipóteses: Tietê viria de tiê, a voz onomatopaica de uma família de aves das quais fazem parte o tié-piranga e o tié-juba; ou viria da junção de ty – águas, líquido, vapor -, e ete – verdadeiro -, significando rio bastante fundo, rio verdadeiro -, tratava-se do primeiro curso d’água considerável que o forasteiro encontrava ao penetrar no sertão.

Em 1929, Plínio Ayrosa, em parecer para o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, contestaria essa hipótese, afirmando que o nome Tietê não era indígena, mas dado pelos portugueses, mesmo porque, nem pelo seu volume, nem pela comparação com outros cursos d’água, os índios seriam levados a atribuir-lhe o significado de rio grande Tietê, rio das anhumas, e também das perdizes, dos veados, dos tetés, dos tiés: qualquer que seja a origem do nome, todos nos remetem à fauna abundante que habitava suas margens.

Um afluente do rio Tietê é o Rio Pinheiros. Este foi retificado na primeira metade do século passado, transformado em canal, teve seu curso revertido para comportar um importante projeto de engenharia que proporcionou uma fonte de eletricidade segura para o desenvolvimento da cidade (A Usina Henry Borden)

Já o Pinheiros, tem um afluente bastante conhecido pelos moradores da zona oeste que é o “Pirajuçara”. Trata-se de um termo tupi que significa “juçara de peixe”, através da junção dos termos pirá (“peixe”) e yu’sara (“juçara”).

O Córrego Pirajuçara nasce no município de Embu das Artes, passa por Taboão da Serra e corre no oeste da Região Metropolitana de São Paulo. No município de São Paulo, o Pirajuçara é canalizado passando sob a Avenida Eliseu de Almeida, voltando a emergir próximo à Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira, onde deságua no Rio Pinheiros.

Contudo, provavelmente o rio mais destacado historicamente para a cidade é o Rio Anhangabaú, também conhecido nos primeiros tempos de colonização como Córrego das Almas, formava, ao lado do Tamanduateí, os limites naturais do núcleo urbano original de São Paulo, chamado de “Triângulo”. É um pequeno ribeirão que nasce a céu aberto entre a Vila Mariana e o Paraíso, passa pela Avenida São João e deságua no Rio Tamanduateí, nas imediações da Rua 25 de Março. Hoje, o ribeirão encontra-se canalizado e corre debaixo do metrô.

Os índios tinham muito medo desse rio. Atribui-se ao nome Anhangabaú várias origens e significados, mas todos indicam o caráter suspeito de suas águas: Anhangaba: diabrura, malefício, ação do diabo ou feitiço; Anhangabahú: anhangaba-y, rio do malefício, da diabrura, do feitiço; Anhangabahy: o mesmo que anhangá-y, rio ou água do mau espírito. Segundo Teodoro Sampaio, esse rio era para os índios “um bebedouro de assombrações”. Provavelmente com o crescimento da população às suas margens, as suas águas impolutas se tornaram um vetor de doenças para os desavisados. De fato, para o jornalista Levino Ponciano, o temor dos índios explicava-se pelas suas águas salobras que causavam doenças, conforme constatou um exame feito no final do século XVIII. Além disso, na época das enchentes, acreditava-se que o ribeirão transbordava e disseminava mais doenças à população. Em 1790, foi construída uma ponte, a Ponte do Lorena (ou do Piques), que permitia a travessia do vale, depois de ter descido e subido as suas encostas. Em 1892, inaugurou-se o Viaduto do Chá.

Outro córrego que tem história é o Ipiranga. Foi lá a proclamação da independência do Brasil. O riacho, que dá o nome ao bairro onde se situa, tem como nascente o Jardim Botânico de São Paulo e como foz o Rio Tamanduateí. Foi às margens do Ipiranga que foi simbolicamente declarada a Independência do Brasil por dom Pedro, em 7 de setembro de 1822. Com esse ato, o príncipe herdeiro se converteu no primeiro imperador brasileiro, futuramente denominado dom Pedro I.

As nascentes do Ipiranga encontram-se no Parque Estadual Fontes do Ipiranga, reserva natural de mata atlântica encravada em plena zona sul da cidade ao lado da rodovia dos Imigrantes. No entanto, como todos os demais rios metropolitanos, atualmente, o córrego sofre com a poluição, por receber altas quantidades de dejetos industriais e domésticos ao longo de seu trajeto de cerca de 9 km até desaguar na margem esquerda do Rio Tamanduateí. Seu nome veio da junção das palavras tupis ‘y (“água, rio”) e pirang (“vermelho”), significando, portanto, “rio vermelho”.

O Ipiranga é um afluente do Tamanduateí, que em tupi, significa “rio de muitas voltas”. O curso original do rio Tamanduateí explica esse nome. Onde atualmente se encontram a Avenida São João e o vale do Anhangabaú, por exemplo, o Tamanduateí fazia uma curva de sete voltas antes de se encontrar com o seu afluente mais importante, o Anhangabaú. O Tamanduateí nasce na Serra do Mar e deságua no Tietê. Sua bacia hidrográfica possui 320 km2. Seu principal afluente era o Rio Anhangabaú, que atualmente jazem sob a cidade junto com a cultura indígena que os denominou. O modelo de urbanização de São Paulo prescindiu da ocupação da área de drenagem dos rios e de até mesmo de seus leitos por vias de transporte de rodagem. .

O Tamanduateí parece comportar-se de forma rebelde contra a concepção de progresso que o transformou num bueiro a céu aberto, depósito de todo o lixo social em perímetro urbano. Canalizado e poluído ele corre com maior velocidade procurando o rio Tietê para desaguar. Sem ter por onde se espraiar, sem encontrar os remansos que continham sua ânsia de desembocar, ele enche e invade impiedosamente a Avenida do Estado que corre ao seu lado.

Foi às margens do Tamanduateí, no centro velho da cidade, que os jesuítas construíram a primeira capela, rezaram a primeira missa e fundaram a vila de Piratininga, marco inaugural de São Paulo. Até o início dos anos 70, o Tamanduateí demarcou a topografia do poder: a riqueza nas terras altas e a miséria nas baixas. No lado oeste, numa colina triangular, concentrava-se a cidade dos templos cristãos, das confeitarias com nomes franceses e dos sobrados imperiais. No leste, ficavam a várzea, as enchentes e os terrenos pestilentos. Contudo, as terras altas, a começar pela colina histórica, no centro, perderam destaque e charme há muito tempo. Ficou a pobreza, que transbordou para todos os lados.

Esperamos que tenham gostado e que nadem mais vezes nas águas sem paradeiro da internet.

Artigo publicado originalmente no site “Vivendocidade”, de Carlos Correa Filho (21/08/2012)

Autor: ematosinho

Eduardo Matosinho é economista e sociólogo com bacharelado pela Universidade de São Paulo (USP). Tem 60 anos e é casado com Luiza Maria da Silva Matosinho e com ela tem um filho de nome João Alexandre da Silva Matosinho. Trabalha atualmente na Galeria Pontes (https://www.galeriapontes.com.br/), onde já está há 17 anos.

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