Nova luz

Emana um fumo d’alma o crepitar do lume…
O incêndio duma flor dá a cinza do perfume.
E o corpo duma onda é um místico braseiro
Que exala, numa ânsia, o branco nevoeiro…
É o incêndio supremo e santo da Matéria,
Donde sai uma luz anímica e sidérea…
Tudo o que é material, como a rocha erma e calma.
Querendo e desejando, é luz, é sonho, é alma!
A alma é o exterior, o corpo o interior.
Onde termina um coração, começa o amor…
Por isso, cada corpo inânime e pesado
Duma auréola d’infinda luz está banhado.
E, assim, uma ansiedade ignota, uma quimera.
Pôs em volta da terra a lúcida atmosfera!…
A luz envolve a chama e a chama envolve a lenha…
Sensível musgo cobre uma insensível penha,
E sobre o musgo paira o aroma espiritual…
Mistério… Num aroma a pedra é imaterial!
E todavia são a mesma vida pura
O claro aroma, o verde musgo, a penha dura!…
A terra é a mãe da Alma, a terra deu à luz
O perfume da flor e a alma de Jesus!…
O lodo é a Piedade, é o Amor infinito.
É apenas comoção a rocha de granito…
No Poeta comovido há a loucura do vento;
A nuvem é um delírio, a água um sentimento…
A fonte que através dum areal se perde,
As suas margens vai vestindo de cor verde,
Lançando nessa terra estéril, ressequida,
Num beijo sempiterno, a semente da Vida.
Uma gota d’orvallio é sonho, é ansiedade,
Quer desça sobre o pó, quer suba à claridade…
Qualquer terra que a toque acorda deslumbrada,
E é uma erva, um perfume, uma alma enamorada!
E é gota d’água, ó astro espiritual, bendito,
Ampliada pela luz, abranges o infinito…
És o éter transcendente, o grande transmissor
Da voz dos mundos e do seu estranho amor!…

Todos os robles dão, ardendo, a mesma luz…
Um tronco sobre um lar é um Cristo numa cruz!
E é calor que agasalha e facho que alumia
O que é em Cristo amor, piedade, harmonia…
E tudo o que é no poeta emoção e delírio
É luz no sol, canto nas aves, cor no lírio!…
E tudo o que é em nós Bondade é num rochedo
Viçoso musgo e santa sombra no arvoredo!…
E, enquanto dou a um pobre um bocado de pão,
O sol enche de luz o saco da amplidão!
E, qual Samaritana, a nuvem religiosa
Dá de beber a toda a terra sequiosa…
Um murmúrio de fonte é um Sermão da Montanha
E a neblina da tarde uma ascensão estranha!…
E enquanto eu sou a morte, ó velho e frio inverno,
Perante o sol — Jesus, és um Lázaro eterno.
Um promontório é um Cristo altivo, triste e só,
E o mar divino um poço imenso de Jacob!…
E as verdes ervas são versículos sagrados
Que os ribeiros e o sol escrevem sobre os prados…
E uma pedra contém a história verdadeira
Do Génesis, da Luz e da Mulher primeira!…
Ainda hoje, o Dilúvio, o velho avô das fontes,
Anda na boca das florestas e dos montes!…
E a mais estéril terra ainda recorda e chora
O tempo em que beijou teus lábios d’oiro, aurora,
Pela primeira vez, ardente de paixão!
Ainda hoje impressiona a terra a sensação
Que seu corpo diluiu em mística ternura,
Ao conceber a primitiva criatura!
E nos olhos da terra ainda fulgura a imagem
De tudo o que ela viu, nessa grande viagem
Através da penumbra infinda do Mistério,
Até desabrochar num coração etéreo!
Há nos olhos da terra a imagem desse olhar
Que a saudade transforma, às vezes, em luar…

Deus disse à luz do sol o segredo da Vida.
Desvendemos a Luz amada e preferida!…
Vejamos a razão suprema da existência
E o que ela tem d’ amor, de espírito e de essência,
O que nela é real, eterno e inconfundível…
Que o nosso olhar penetre o mundo do invisível.
Os paramos do Sonho, a amplidão da Quimera,
Onde já se descobre etérea Primavera,
Nebulosa subtil composta dum perfume.
Dum éter, dum amor, duma luz que resume
A nova Criação que está para surgir
Do caos de Amanhã, do beijo do Porvir!…

O pó que a gente vê sobre os campos, disperso,
É um caos; nele sonha um místico Universo!
Apaga-se uma estrela e nela ressuscita
A sua frágil luz, numa luz infinita…
Se um homem fecha os roxos olhos, congelado,
D ‘olhos eternos ele fica constelado!
B duns ouvidos transformados em poeira,
Brota a audição completa, imensa e verdadeira…
B tudo o que termina e a cinza se reduz,
Vai acordar em alma e despertar em luz!
Um mundo auroreal, quimérico germina
Em cada areia, em cada gota cristalina…
E a nova Vida, numa onda a resplender,
Aflora à superfície ideal do novo ser.
Um novo Apolo vai tocar a nova Lira…
E na água que se bebe e no ar que se respira,
Nas nuvens onde dorme a clara luz dos céus,
Palpita um novo amor, murmura um novo Deus…

Teixeira de Pascoaes, pseudônimo literário de Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos (São Gonçalo, Amarante, Portugal, 8 de novembro de 1877 — Amarante, Gatão, Portugal, 14 de dezembro de 1952). In “Para a luz”

Autor: ematosinho

Eduardo Matosinho é economista e sociólogo com bacharelado pela Universidade de São Paulo (USP). Tem 60 anos e é casado com Luiza Maria da Silva Matosinho e com ela tem um filho de nome João Alexandre da Silva Matosinho. Trabalha atualmente na Galeria Pontes (https://www.galeriapontes.com.br/), onde já está há 17 anos.

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