“Vem por aqui” – dizem-me alguns com olhos doces,
estendendo-me os braços, e seguros
de que seria bom que eu os ouvisse
quando me dizem: “vem por aqui”!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
e cruzo os braços,
e nunca vou por ali…
A minha gloria é esta:
criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
com que rasguei o ventre a minha Mãe.
Não, não vou por ai! Só vou por onde
me levam meus próprios passos…
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
porque me repetis: “vem por aqui”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
redemoinhar aos ventos,
como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
a ir por ai…
Se vim ao mundo, foi
só para desflorar florestas virgens,
e desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre, nas vossas veias, sangue velho do avós,
e vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
amo os abismos, as torrentes, os desertos…
Ide! Tendes estradas,
tendes jardins, tendes canteiros,
tendes pátrias, tendes tectos,
e tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
e sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
mas eu, que nunca principio nem acabo,
nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peca definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei para onde vou,
não sei para onde vou
– sei que não vou por ai!
José Régio, pseudônimo de José Maria dos Reis Pereira (Vila do Conde, Portugal, 17 de setembro de 1901 — Vila do Conde, Portugal, 22 de dezembro de 1969)
Poema me revelado por um jovem poeta que trabalhou comigo como jornalista no Dieese. Ele é também escritor e editor e se chama Luiz Ribeiro, e comentou ontem sobre isso via WhatsApp: “Eu adoro esse poema, Matosinho! Que bom que a indicação passou adiante e mais pessoas podem lê-lo, senti-lo e refletir sobre ele.”