A Mário de Andrade
Chato, pardo-cinzento, o chão
flutua lento, mole,
o chão escorre vagaroso,
contrai-se em blocos súbitos,
estica-se em flechas longas
trepidantes,
dispara, de repente, em riscos elásticos,
gira,
rodopia,
turbilhona e ferve num vapor sutil de linhas e
movimentos.
Aquele chão carrega todas as imaginações
do mundo!
Aquele chão carrega
iscas da Ucrânia,
vinhas de Bordéus,
parques do Tâmisa,
saveiros do Volga,
âmbar, corais, madrepérolas das Antilhas,
guano de Mollendo,
canaviais de Cuba,
juncos de Shangai,
cafezais de Ribeirão Preto,
chifres de Pampa,
fornos de Essen, fornos de Newcastle,
óleos de Tampico,
salitres de Iquique,
barbatanas da Terra Nova,
mares coalhados de ferros e madeiras,
terras gordas,
ilhas com batuques, tan-tans e redes
molinosas,
montanhas verdes, montanhas de óxidos e
cristais,
rios onde bóiam troncos, plantas, cobras e
tartarugas,
florestas de plumas, penas e folhagens,
praias, canais, mangues,
luzes de trópicos, luzes do polo,
desertos,
civilizações…
Aquele chão é uma paisagem em marcha.
Chão que mistura as poeiras do Universo e
onde se confundem todos os ritmos do
passo humano!
Chão épico, chão lírico, chão idealista,
chão indiferente de Broadway,
largo, chato, prático e simples como este
roof liso, suspenso no ar, este roof, onde um
saxofone derrama um morno torpor
de senzalia debaixo do sol.
Ronald de Carvalho (Rio de Janeiro, 16 de maio de 1893 — Rio de Janeiro, 15 de fevereiro de 1935). Colaborou na edição n.º 1 da Orpheu.