Talvez

Talvez não ser,
é ser sem que tu sejas,
sem que vás cortando
o meio dia com uma
flor azul,
sem que caminhes mais tarde
pela névoa e pelos tijolos,
sem essa luz que levas na mão
que, talvez, outros não verão dourada,
que talvez ninguém
soube que crescia
como a origem vermelha da rosa,
sem que sejas, enfim,
sem que viesses brusca, incitante
conhecer a minha vida,
rajada de roseira,
trigo do vento,

E desde então, sou porque tu és
E desde então és
sou e somos…
E por amor
Serei… Serás… Seremos…

Pablo Neruda (Parral, Chile, 12 de julho de 1904 — Santiago, Chile, 23 de setembro de 1973), in “Cem sonetos de amor”, nota: Soneto LXIX

Jorge Luis Borges: Conto “O Aleph”, um trecho

Na candente manhã de fevereiro em que Beatriz Viterbo morreu, depois de uma imperiosa agonia que não cedeu um só instante nem ao sentimentalismo nem ao medo, observei que os painéis de ferro da Praça Constitución tinham renovado não sei que anúncio de cigarros; o fato me desgostou, pois compreendi que o incessante e vasto universo já se afastava dela e que essa mudança era a primeira de uma série infinita.

(…)

Roguei-lhe que me lesse uma passagem, mesmo que fosse breve. Abriu uma gaveta da escrivaninha, tirou um maço volumoso de folhas de bloco impressas com o timbre da Biblioteca Juan Crisóstomo Lafinur e leu com sonora satisfação:

Vi, como o grego, as cidades dos homens,

Os trabalhos, os dias de vária luz, a fome;

Não corrijo os fatos, não falseio os nomes,

Mas le voyage que narro é… autour de ma chambre.

— Estrofe, sob qualquer ângulo, interessante — opinou. — O primeiro verso granjeia o aplauso do catedrático, do acadêmico, do helenista, quando não dos falsos eruditos, setor considerável da opinião; o segundo passa de Homero para Hesíodo (toda uma implícita homenagem, na fachada do flamante edifício, ao pai da poesia didática), não sem remoçar um procedimento cujo ancestral está na Escritura, a enumeração, congérie ou conglobação; o terceiro — barroquismo, decadentismo, culto depurado e fanático da forma? — consta de dois hemistíquios gêmeos; o quarto, francamente bilíngue, assegura-me o apoio incondicional de todo espírito sensível aos desenfadados impulsos da facécia. Nada direi da rima rara nem da ilustração que me permite, sem pedantismo!, acumular em quatro versos três alusões eruditas que abarcam trinta séculos de densa literatura: a primeira à Odisseia, a segunda aos Trabalhos e Dias, a terceira à bagatela imortal que nos proporcionaram os ócios da pena do saboiano… Compreendo, uma vez mais, que a arte moderna exige o bálsamo do riso, o scherzo. Decididamente, tem a palavra Goldoni! Leume muitas outras estrofes, que também obtiveram sua aprovação e seu comentário profuso. Nada de memorável havia nelas; nem sequer as julguei muito piores que a anterior. Em sua redação haviam colaborado a aplicação, a resignação e o acaso; as virtudes que Daneri lhes atribuía eram posteriores. Compreendi que o trabalho do poeta não estava na poesia; estava na invenção de razões para que a poesia fosse admirável; naturalmente, esse ulterior trabalho modificava a obra para ele, mas não para outros. A dicção oral de Daneri era extravagante; sua inépcia métrica, salvo contadas vezes, impediu-o de transmitir essa extravagância ao poema.

Jorge Luis Borges (Buenos Aires, 24 de agosto de 1899 — Genebra, Suíça, 14 de junho de 1986), In “O Aleph”, tradução de Flávio José Cardoso, Editora Globo, Porto Alegre, 1972

Graciliano Ramos: Um pouco de seu pensamento em três frases

Queria endurecer o coração, eliminar o passado, fazer com ele o que faço quando emendo um período — riscar, engrossar os riscos e transformá-los em borrões, suprimir todas as letras, não deixar vestígio de ideias obliteradas.”. In “Memórias do cárcere”

É o processo que adoto: extraio dos acontecimentos algumas parcelas; o resto é bagaço.”. In “São Bernardo”

Só conseguimos deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida.”

Graciliano Ramos (Quebrangulo, Alagoas, 27 de outubro de 1892 – Rio de Janeiro, 20 de março de 1953)

Dulce Martins: Álbum de família, Exu e Vitória e os gatos

Nascida em Santos, em 1957, a artista plástica Dulce Martins tem nas lembranças de infância, nos temas folclóricos e na natureza os principais pontos de partida de sua relação plástica com o mundo. Por meio da pintura, estabelece conexões com a realidade, interpretando o que está à sua volta. Existe em suas imagens pureza, simplicidade e, como costuma ocorrer no gênero naïf, um denso mergulho nas próprias raízes. Situações vividas, vistas ou mesmo imaginadas ganham espaço como expressões de uma inteligência visual. As soluções visuais decorrem justamente dessas evocações. Um elemento importante no trabalho de Dulce está na maneira como suas obras atingem a universalidade. Um dos dilemas da arte está justamente em tornar o particular universal. Não é tarefa fácil, nem imediata. Também não se obtém com planejamento, mas sim com um progressivo fazer e amadurecimento da própria linguagem. Extrair dos próprios momentos uma linguagem coletiva traz elementos que parecem inexplicáveis. Pode-se pensar em temas ou imagens arquetípicas, mas também cabe apontar, simplificando sem ser simplista, que o mergulho cada vez mais aprimorado de Dulce em si mesma permite atingir o que há de mais profundo na alma humana.

A presença das máscaras no cotidiano é o motivo de reflexão desta obra de Dulce Martins. Natural de Santos, no litoral paulista, situa a cena na chamada Casa da Frontaria Azulejada, uma célebre obra arquitetônica local, construída em 1865 para residência e armazém do comendador português Manoel Joaquim Ferreira Netto (1808-1868). Desde 2007, o prédio passou a funcionar como espaço cultural, recebendo exposições, eventos beneficentes e espetáculos, além de ser cenário de filmagens de propagandas, novelas, minisséries e filmes. O local ocupa a centralidade do quadro e chama a nossa atenção desde o primeiro momento pela sua harmonia. O equilíbrio das cores, principalmente dos azuis, vermelhos e amarelos na fachada do edifício e nas roupas dos transeuntes, ajuda a criar uma atmosfera de solidez e segurança. Talvez seja isso que torne a obra tão fascinante, pois a temática é tratada com a sobriedade que merece, mas sem um clima trágico. Parece que Dulce Martins já consegue apontar para o amanhã. Trata-se de um espaço incerto em que a máscara, enquanto não houver vacina ou cura da pandemia, será onipresente. O melhor caminho é ver o objeto como companheiro. Mesmo que alguns se sintam incomodados, é um caminho que propicia a recondução para uma nova normalidade.

Texto de Oscar D’Ambrosio. Ele é jornalista pela USP, mestre em Artes Visuais pela Unesp, graduado em Letras (Português e Inglês) e doutor em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Gerente de Comunicação e Marketing da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Coordena o projeto @arteemtempodecoronavirus e é responsável pelo site www.oscardambrosio.com.br.

As obras da artista naïf Dulce Martins encontram-se à venda.

Contatos:
www.facebook.com/dulcemmspereira
www.instagram.com/dulcemmartins
dulcemmartins@hotmail.com
WhatsApp: (13) 9 9121-7123

Millôr Fernandes: “Livre pensar é só pensar”, em seis frases

Todo cego moral se julga um guia de povos.”

Como são admiráveis as pessoas que não conhecemos muito bem!”

Quem se curva aos opressores mostra a bunda aos oprimidos.”

Deus protege os fracos e desamparados. Mas um bom sindicato ajuda.”

Se Deus fosse contra a paquera não teria feito o pescoço com tal mobilidade.”

De madrugada o melhor amigo do homem é o cachorro-quente.

Millôr Fernandes (Rio de Janeiro, 16 de agosto de 1923 — Rio de Janeiro, 27 de março de 2012)

San Bertini: “Assim é, se lhe parece”

Segue em anexo convite da minha exposição “Assim é, se lhe parece”.

Local: Galeria 18

Endereço: Rua Simpatia, 23 – Vila Madalena

Exposição de 15/08 à 14/09

Um abraço“,

San Bertini

Partindo de um trabalho extremamente agradável e delicado, San Bertini apresenta a mostra “Assim é, se lhe parece”, fruto da sua mais recente produção.

Como uma das principais características de seu trabalho, a artista possui uma capacidade genuína de transformar temas propositadamente ignorados em belas imagens, tornando-os leves, e possibilitando a reflexão sobre o assunto de um ponto de vista mais profundo, eliminando a superficialidade imposta pelo afastamento natural de algo que não gostamos.

Na exposição atual, San aprofunda sua pesquisa trazendo não somente a suavização do tema como aborda um novo ponto de vista sobre o seu próprio trabalho: afinal, o que é o que estamos vendo? Ao ser deslocado, o mais denso dos temas, pode se tornar leve, e nesse caso sobre qual tema estamos falando? 

As pinturas e desenhos, por vezes parcialmente encobertos, por outras propositalmente inacabados, nos levam à livre interpretação das obras, evocando um sentimento de não-lugar, ou de uma identificação não óbvia, atraindo o olhar e ganhando novos sentidos, individuais a cada espectador.

“Não-lugar” é um termo criado por Marc Augé, descrevendo um espaço físico que é transitório e frequentemente solitário, um lugar de passagem que jamais é o destino de um indivíduo. Abusando deste conceito, suas obras retratam justamente o limite entre um lugar e um não lugar, que só pode ser definido como tal, com a interação de quem os vê.

Em outro aspecto, a artista aborda ainda a relação com o apagamento antropológico, de nós como seres humanos, físico, social e cultural. Uma verdadeira linha tênue entre resistência e existência, em estar e não estar, representado também pelas partes encobertas ou inacabadas das obras.

A mostra “Assim é, se lhe parece” instiga a inspeção dos objetos retratados, deslocados e unidos a novos elementos, agregando novos significados, mostrando belezas que existem em lugares esquecidos.

San Bertini, ou Sandra Bertini (1971), natural de São Paulo, iniciou os seus estudos de pintura em 1982 na Penha, com o Artista Professor César Sarau, com quem estudou durante sete anos.
– Liceu de Artes e Ofícios – Centro Cultural durante dois anos (1986 e 1987), estudos de História da Arte, Perspectiva, Anatomia e Modelo Vivo.
– Ateliê do paisagista Alexandre Reider, (2002 e 2003).
– Workshops de Modelo Vivo Avançado com Gilberto Geraldo de São Petersburgo (2003).
– Curso de Atelier de Técnicas e Manipulação de Tintas a Óleo, seus Vernizes e Pigmentos (2006), Centro Cultural Casa do Restaurador.
– Curso de Atelier de Técnicas e Manipulação de Tintas Acrílicas, seus Vernizes e Pigmentos (2006), Centro Cultural Casa do Restaurador.
– Curso de Pincéis (2007), Centro Cultural Casa do Restaurador.
– Bacharelado em Artes Visuais (escultura, pintura e gravura) no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo (2008).
Profissionalmente em 1994 executou trabalhos de ilustração para a revista Alquimia, realizando a primeira exposição durante o lançamento da referida revista, no Centro Cultural Moriconi, em Suzano. Em 1995 criou e realizou a capa da revista Alquimia (nº 4 com o título Anjos – Mitos ou Realidades).
Em 1995 iniciou as suas atividades como professora de desenho e pintura.
Professora de desenho do Centro Cultural Casa do Restaurador (2006 a 2008).

Contatos:
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www.instagram.com/sanbertini
san.bertini@gmail.com