Na candente manhã de fevereiro em que Beatriz Viterbo morreu, depois de uma imperiosa agonia que não cedeu um só instante nem ao sentimentalismo nem ao medo, observei que os painéis de ferro da Praça Constitución tinham renovado não sei que anúncio de cigarros; o fato me desgostou, pois compreendi que o incessante e vasto universo já se afastava dela e que essa mudança era a primeira de uma série infinita.
(…)
Roguei-lhe que me lesse uma passagem, mesmo que fosse breve. Abriu uma gaveta da escrivaninha, tirou um maço volumoso de folhas de bloco impressas com o timbre da Biblioteca Juan Crisóstomo Lafinur e leu com sonora satisfação:
Vi, como o grego, as cidades dos homens,
Os trabalhos, os dias de vária luz, a fome;
Não corrijo os fatos, não falseio os nomes,
Mas le voyage que narro é… autour de ma chambre.
— Estrofe, sob qualquer ângulo, interessante — opinou. — O primeiro verso granjeia o aplauso do catedrático, do acadêmico, do helenista, quando não dos falsos eruditos, setor considerável da opinião; o segundo passa de Homero para Hesíodo (toda uma implícita homenagem, na fachada do flamante edifício, ao pai da poesia didática), não sem remoçar um procedimento cujo ancestral está na Escritura, a enumeração, congérie ou conglobação; o terceiro — barroquismo, decadentismo, culto depurado e fanático da forma? — consta de dois hemistíquios gêmeos; o quarto, francamente bilíngue, assegura-me o apoio incondicional de todo espírito sensível aos desenfadados impulsos da facécia. Nada direi da rima rara nem da ilustração que me permite, sem pedantismo!, acumular em quatro versos três alusões eruditas que abarcam trinta séculos de densa literatura: a primeira à Odisseia, a segunda aos Trabalhos e Dias, a terceira à bagatela imortal que nos proporcionaram os ócios da pena do saboiano… Compreendo, uma vez mais, que a arte moderna exige o bálsamo do riso, o scherzo. Decididamente, tem a palavra Goldoni! Leume muitas outras estrofes, que também obtiveram sua aprovação e seu comentário profuso. Nada de memorável havia nelas; nem sequer as julguei muito piores que a anterior. Em sua redação haviam colaborado a aplicação, a resignação e o acaso; as virtudes que Daneri lhes atribuía eram posteriores. Compreendi que o trabalho do poeta não estava na poesia; estava na invenção de razões para que a poesia fosse admirável; naturalmente, esse ulterior trabalho modificava a obra para ele, mas não para outros. A dicção oral de Daneri era extravagante; sua inépcia métrica, salvo contadas vezes, impediu-o de transmitir essa extravagância ao poema.
Jorge Luis Borges (Buenos Aires, 24 de agosto de 1899 — Genebra, Suíça, 14 de junho de 1986), In “O Aleph”, tradução de Flávio José Cardoso, Editora Globo, Porto Alegre, 1972