Gaúcho começou a procurar-me. A noite acocorava-se junto à minha esteira, ficava até a hora do silêncio a entreter-me com a narração das suas complicadas aventuras. Esforçava-me por entendê-lo, às vezes o interrompia buscando compreender alguma expressão de gíria. Vanderlino trocava-me em linguagem comum a prosa obscura, e na ausência dele a conversa arrastava-se, cheia de equívocos e repetições.
– Os homens, dizia Gaúcho, dividem-se em duas classes: malandros e otários, e os malandros nasceram para engrupir os otários.
Ria-me com a franqueza do meu esquisito amigo:
– Eu, naturalmente, devo figurar na categoria dos otários, não é verdade?
– Se vossa mercê não é malandro… Só há duas classes.
Logo no segundo ou terceiro encontro o arrombador me fez esta observação curiosa:
– Vossa mercê usa panos mornos comigo, parece que tem receio de me ofender. Não precisa ter receio, não; diga tudo: eu sou ladrão.
– Sim, sim, retruquei vexado. Mas isso muda.
Lá fora você pode achar ofício menos perigoso.
– Não senhor, nunca tive intenção de arranjar outro ofício, que não sei nada. Só sei roubar, muito mal: sou um ladrão porco.
Diversos profissionais corroboravam esse juízo severo, ostentavam desprezo à modesta criatura. Eram em geral vaidosos em excesso, fingiam possuir qualidades extraordinárias e técnica superior. Tentavam enganar-nos, talvez enganar-se, mentiam, queriam dar a impressão de realizar trabalho perfeito. Não se misturavam com os indivíduos comuns, e o natural expansivo do escrunchante exasperava-os. Obtive lápis, papel, comecei de novo a tomar notas, embora fosse quase certo jogá-las fora.
(…)
Graciliano Ramos (Quebrangulo, Alagoas, 27 de outubro de 1892 – Rio de Janeiro, 20 de março de 1953), In “Memórias do Cárcere – Volume II, Capítulo 17, Literatura comentada, Nova Cultural, 1988.