A contraposição entre magia e religião

O sociólogo francês de origem russa Georges Gurvitch (1894-1965) aborda na obra “A vocação atual da sociologia” o tema “A magia, a religião e o direito”. Inspirado na leitura desse texto vou tentar mostrar para os leitores do site “Vivendocidade” qual seria a contraposição entre magia e religião.

Na introdução desse trabalho o autor aponta que muitos estudiosos de várias áreas, como etnólogos, sociólogos, historiadores, juristas, filósofos e teólogos, participaram de uma maneira muito ativa na discussão do problema da relação entre a magia e a religião nas sociedades arcaicas, assim como o das repercussões sociais da magia.

No entanto, segundo ele, o problema central dessa discussão ainda não teria sido resolvido, ou seja, não se chegou a um acordo nem sobre a possibilidade de traçar uma linha de demarcação precisa entre magia e religião, nem sobre uma determinação da função específica da magia na vida social, muito menos sobre precisar as suas relações com a técnica, a ciência, a moral e o direito.

Gurvitch procura mostrar que a irredutibilidade maior ou menor da magia e da religião, geradas não só pela oposição de duas atitudes coletivas diferentes, mas também pela oposição de duas categorias fundamentais do pensamento dos arcaicos, que seriam o maná (que, de acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, tem o sentido figurado de alimento espiritual de origem divina; o que consola a alma) e o sagrado, constitui um aspecto essencial do pluralismo e da complexidade das suas sociedades.

Ele aponta que qualquer tentativa para opor esses dois temas como elementos irredutíveis encontra três objeções prévias:

a) Como separar a magia da religião, quando na realidade elas estão imbricadas, contendo a maior parte das religiões conhecidas elementos de magia, tanto branca como negra;

b) Separar completamente a magia da religião não seria separar a magia dos estados de consciência coletiva, isto é, da sociedade cuja encarnação é a religião? e;

c) A oposição entre força sobrenatural transcendente (deus, totem) e força sobrenatural imanente (força mágica, maná) pressupõe que os arcaicos são geralmente capazes de distinguir entre o “sobrenatural” e o “natural”, assim como entre o “transcendente” e o “imanente”, pressuposições essas ingênuas e erradas, que lhe atribuem as nossas concepções atuais.

Quando aborda as “Conclusões gerais sobre as propriedades do maná e da magia” Gurvitch discute a oposição entre o maná e o sagrado, procurando resumir em nove tópicos os traços específicos do maná, que considera o conceito-chave da magia, na sua oposição com o sagrado e o divino, que considera, por sua vez, o conceito-chave da religião.

No primeiro tópico mostra que o maná é uma força sobrenatural difundida no mundo, afirmando-se como um poderoso ímã da emotividade e da vontade, ao mesmo tempo emotiva e individual. Em seguida, ele afirma que essa força age nas relações entre os seres do mesmo nível ontológico, ou seja, relativo à investigação teórica do ser, bem mais do que nas relações entre os seres superiores e inferiores. No tópico III esclarece que as duas características precedentes transformam a força sobrenatural, que se chama maná, em princípio, imanente aos seres entre os quais ela atua.

No tópico seguinte, Gurvitch aponta que o maná pode mesmo ser parcialmente criado por um esforço bem sucedido, permitindo o rito mágico tanto entrar em contato com o maná, como criá-lo. No tópico V mostra que o maná, sendo qualidade, substância, ação, potencial de eficácia, é, ao mesmo tempo e de modo indistinto, pessoal e impessoal. No VI aponta que o maná, enquanto força, é simultaneamente impessoal e pessoal; no entanto, pode ser, ou, sobretudo coletivo, ou, sobretudo individual, segundo os indivíduos de que emana. Afirma, então, que podemos distinguir, neste sentido, o maná do grupo e o maná do indivíduo.

No tópico VII ele mostra que o maná não é privilégio de uma casta especial de mágicos nem de confrarias secretas. Ele é uma espécie de energia vital imanente espalhada no mundo e agindo entre os seres do mesmo nível e todos os seres o possuem e o manejam um pouco. Por isso em todas as relações humanas, o maná desempenha o seu papel mesmo sem a intervenção de ritos mágicos especiais, onde os mágicos profissionais, brancos ou negros (feiticeiros) não passam de homens particularmente hábeis em atualizar o maná acessível a todos, e os clubes e as confrarias secretas não fazem mais do que encarnar e manejar o maná coletivo na sua pureza, à qual a submissão ao sagrado, tal como ela se produz no clã, não causou qualquer dano.

Já no tópico VIII, Gurvitch afirma que o maná não se identifica nem com a consciência (individual ou coletiva), nem com a alma, nem com o espírito, ainda menos com o sagrado ou o divino. Ele se afirma como independente na sua essência e pode penetrar qualquer elemento. Finalmente, no tópico IX ele mostra que o maná, pelas suas propriedades, nada tem a ver com o sagrado, o divino e a religião, sendo justamente uma força sobrenatural que não é sagrada, que não implica obediência e submissão e não traz a salvação; é uma força sobrenatural imanente, ao passo que o sagrado é uma força sobrenatural transcendente.

Outro aspecto importante que Gurvitch aborda nas “Conclusões gerais sobre as propriedades do maná e da magia” é a definição da magia e da religião. Afirma que resulta de todas as características precedentes que a magia e a religião são heterogêneas, tanto pelos seus conteúdos ou “obras”, como pelas atitudes que provocam nos sujeitos, coletivos ou individuais.

Esclarece que a base psico-social da magia é o desejo ilimitado de dominar o mundo por meio de manifestações, desejo esse acompanhado do receio de não saber suficientemente dominar as forças que se desencadeiam. Já a base psico-social da religião é a angústia irremediável, o sentimento de abandono e de fraqueza, de que o outro pólo é a esperança de salvação, somente trazida pela condescendência de uma força mais ou menos transcendente.

Para Gurvitch, a magia pode ser pública ou secreta, branca ou negra e não há paralelismo entre estas duas oposições, pois se toda magia negra é secreta, ao invés, a magia branca tanto pode ser pública como secreta, tanto coletiva como individual. Ele mostra que a religião, pelo contrário, é sempre coletiva no seu conteúdo (dogma revelado ao grupo), e, habitualmente também, no seu exercício (culto e ritos) e tem uma tendência muito nítida para ser exclusivamente pública.

Na sua visão, a magia favorece o desenvolvimento do individualismo de uma forma indireta, pois, em primeiro lugar a concorrência entre a magia e a religião pode contribuir para a pluralização dos grupos na sociedade arcaica e para a limitação do ascendente exercido sobre o clã pelas confrarias secretas, fazendo com que surja uma atmosfera mais favorável ao desenvolvimento do individualismo; e, em segundo lugar, a própria crença na autonomia, no poder manipulador da vontade humana coletiva ou individual, favorece indiretamente, no indivíduo, o sentimento de si próprio e a sua libertação parcial da dominação do conjunto.

Gurvitch conclui a definição de magia e de religião afirmando que assim combinada com fatores econômicos e políticos, a magia torna-se um fator de maior diferenciação dos indivíduos na sociedade arcaica, diferenciação essa que favorece o pluralismo dos grupos provocado pela concorrência entre religião e magia.

Artigo publicado originalmente no site “Vivendocidade”, de Carlos Correa Filho (31/01/2012)

Autor: ematosinho

Eduardo Matosinho é economista e sociólogo com bacharelado pela Universidade de São Paulo (USP). Tem 59 anos e é casado com Luiza Maria da Silva Matosinho e com ela tem um filho de nome João Alexandre da Silva Matosinho. Trabalha atualmente na Galeria Pontes (https://www.galeriapontes.com.br/), onde já está há 17 anos.

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