Trecho de “Lavoura arcaica”, publicado em 1975

“…investiguei os arbustos destruídos no abandono do jardim em frente, mas nada ali se mexia, era um vento parado, cheio de silêncio, nem mesmo uma tímida palpitação corria o mato, a imaginação tem limites eu ainda pude pensar, existia também um tempo que não falha!…”

In “Lavoura arcaica” – Raduan Nassar (Pindorama, 27 de novembro de 1935)

Gago apaixonado

Mu-mu-mulher, em mim fi-fizeste um estrago
Eu de nervoso estou-tou fi-ficando gago
Não po-posso com a cru-crueldade da saudade
Que que mal-maldade, vi-vivo sem afago

Tem tem pe-pena deste mo-moribundo
Que que já virou va-va-va-va-ga-gabundo
Só só só só por ter so-so-sofri-frido
Tu tu tu tu tu tu tu tu
Tu tens um co-coração fi-fi-fingido

Mu-mu-mulher, em mim fi-fizeste um estrago
Eu de nervoso estou-tou fi-ficando gago
Não po-posso com a cru-crueldade da saudade
Que que mal-maldade, vi-vivo sem afago

Teu teu co-coração me entregaste
De-de-pois-pois de mim tu to-toma-maste
Tu-tua falsi-si-sidade é pro-profunda
Tu tu tu tu tu tu tu tu
Tu vais fi-fi-ficar corcunda!

Noel de Medeiros Rosa (Rio de Janeiro, 11 de dezembro de 1910 — Rio de Janeiro, 4 de maio de 1937), grande sambista carioca

No entardecer dos dias de Verão

No entardecer dos dias de Verão, às vezes,
Ainda que não haja brisa nenhuma, parece
Que passa, um momento, uma leve brisa…
Mas as árvores permanecem imóveis
Em todas as folhas das suas folhas
E os nossos sentidos tiveram uma ilusão,
Tiveram a ilusão do que lhes agradaria…
Ah, os sentidos, os doentes que veem e ouvem!
Fôssemos nós como devíamos ser
E não haveria em nós necessidade de ilusão…
Bastar-nos-ia sentir com clareza e vida
E nem repararmos para que há sentidos…
Mas graças a Deus que há imperfeição no Mundo
Porque a imperfeição é uma cousa,
E haver gente que erra é original,
E haver gente doente torna o Mundo engraçado.
Se não houvesse imperfeição, havia uma cousa a menos,
E deve haver muita cousa
Para termos muito que ver e ouvir…

Alberto Caeiro, in “O Guardador de Rebanhos”, heterônimo de Fernando Pessoa (Lisboa, 13 de Junho de 1888 — Lisboa, 30 de Novembro de 1935)

Poema postado no Facebook pela prima Mariangela Devienne Ferreira

Eu faço versos

Eu faço versos
Como quem chora
De desalento
De desencanto
Fecho o meu livro
Se por agora
Não tens motivo
Nenhum de pranto
Meu verso é sangue
Volúpia ardente
Tristeza esparsa
Remorso vão
Dói-me nas veias
Amargo e quente
Cai gota
A gota
Do coração
E nestes versos
De angústia rouca
Assim dos lábios
A vida corre
Deixando um acre
Sabor na boca
Eu faço versos
Como quem morre

Wally Salomão (Jequié, Bahia, 3 de setembro de 1943 — Rio de Janeiro, 5 de maio de 2003)

Novíssimo Prometeu

Eu quis acender o espírito da vida,
Quis refundir meu próprio molde,
Quis conhecer a verdade dos seres, dos elementos,
Me rebelei contra Deus,
Contra o papa, os banqueiros, a escola antiga,
Contra minha família, contra meu amor,
Depois contra o trabalho,
Depois contra a preguiça,
Depois contra mim mesmo,
Contra minhas dimensões:
Então o ditador do mundo
Mandou me prender no Pão de Açúcar;
vêm esquadrilhas de aviões
Bicar o meu fígado
Vomito bílis em quantidade,
Contemplo lá embaixo as filhas do mar
vestidas de maillot, cantando sambas,
Vejo as madrugadas, as tardes nascerem
– Pureza e simplicidade da vida! –
Mas não posso pedir perdão.

Murilo Mendes (Juiz de Fora, MG, 13 de maio de 1901 — Lisboa, Portugal, 13 de agosto de 1975)